Tradução: Mas de onde você tira sua
proteína?
Hello, little loafs!
Aqui é novamente a Thalita, para continuar nossa discussão
sobre como criar um personagem vegetariano/vegano que seja realista. Já
entendemos o vegetarianismo
e o veganismo
e, se você leu os posts (e, caso não tenha lido, recomendo que os leia antes e
depois volte aqui), deve estar pensando que ser vegano é fácil e tranquilo e smooth.
Claro, até agora tratamos apenas do personagem enquanto indivíduo, sem estar
inserido numa família, nas relações escolares e/ou de trabalho, amizades e
inimizades etc.
Esse provavelmente será o menor post, mas também o mais
interessante do ponto de vista dos leitores do blog (ou assim espero), já que
vou tentar mostrar diversos pontos em que as relações entre pessoas que consomem
derivados de animais e veganos podem gerar conflitos. E o que um bom escritor
deseja, se não excelentes conflitos para seus personagens?
Antes, porém, todavia, contudo, você deve se lembrar do último
post, em que expliquei rápida e superficialmente como funciona o
capitalismo e a economia de livre comércio. Nesse post também coloquei que é
necessário considerar, para uma análise mais completa, que existem alguns
fatores que também influenciam a economia: os impostos; as leis regulatórias;
os incentivos fiscais; e, por último, mas não menos importante, a cultura.
Nossa sociedade e cultura são baseadas em exploração animal:
carne, couro, leite, ovos, lã, seda, para citar apenas alguns dos principais
produtos. Produtores de agricultura têm incentivos fiscais, lobbying e a
cultura ao seu favor. Mesmo entre os veganos, não são todos que têm noção das
verdadeiras consequências de se consumir derivados de animais para a natureza,
para a saúde e para a sociedade. Isso sem falar de toda uma indústria, mídia e
propaganda que naturaliza e incentiva o consumo de derivados de animais.
Por isso, qualquer que seja o motivo do seu personagem para
ser vegan, ele vai ter que lidar com resistência cultural, independente
de classe social e econômica, gênero, religião. É como se fosse um
choque cultural, porque enquanto estamos acostumados com uma cultura onde o
consumo de derivados e exploração animal são naturais, o veganismo e a pessoa
vegana contestam isso em seu cerne: simplesmente não há necessidade.
E esse choque vai se apresentar ao seu personagem mesmo que
ele não o provoque. O simples ato de não se alimentar de produtos derivados de
animais gera reações, desde as mais simpáticas e baseadas na falta de
informação, até as mais ignorantes e baseadas em pura ignorância.
As mais comuns são (não necessariamente nessa ordem):
·
Nem frango?
·
Nem peixe?
·
Nem queijo?!
·
E se os ovos forem de galinhas do quintal do
meu/minha *insere parente que tem uma chácara ou fazenda*? Ele/a não maltrata
suas galinhas!
·
Então o que você come?
·
E as proteínas?
·
Eu nunca conseguiria! Só de pensar em desistir
de *insere derivado de animal*... Não, eu nunca conseguiria.
· Teve uma vez que fiquei sem comer *insere derivado de animal* por *insere determinado período de tempo*!
Tradução: Ninguém liga para o quanto
de proteína que você consome até descobrirem que você é vegan.
Se o seu personagem for menor de idade e mora com a família,
e a família não tem a mínima simpatia pelo vegetarianismo, teremos conflitos
familiares! Se o seu personagem trabalha numa empresa onde os colegas estão
mais ocupados com o salário no fim do mês do que com os amigos, teremos
conflitos no trabalho! Se o seu personagem tem “amigos” sacanas, mais interessados
na próxima piada ou no próprio umbigo, teremos conflitos na amizade! E assim
por diante...
Claro, a vida de um vegano também não é amarga desse jeito
e, ocasionalmente, encontramos pessoas que estão verdadeiramente interessadas
no movimento ou são simpáticas e apenas querem diminuir seu consumo de
derivados de animais, seja pela saúde ou pelo planeta. Na sua história, seu
personagem vegano poderá ter uma vida um pouco menos amigável, com várias
situações como as descritas acima, ou mais simpática — isso irá depender muito
da idade do seu personagem e dos seus círculos de amigos.
Geralmente (apenas lembrando que geralmente não é
sinônimo de via de regra), pessoas mais velhas têm um pouco mais de
resistência ao movimento vegano e jovens não apenas são simpáticos, como muitas
vezes têm uma pontinha de admiração por pessoas veganas. Mais uma vez, acho que
não preciso ressaltar que existem inúmeras exceções a esse geralmente.
Se pararmos para pensar no movimento vegano, podemos
perceber que seu objetivo envolve a sociedade como um todo: parar completamente
com toda e qualquer exploração animal. Não basta apenas um grupo pequeno ser
vegano, pois enquanto existir uma única pessoa que explora animais o objetivo
do movimento não será alcançado. Claro que pensar desse jeito é ser idealista
demais. Mas, como disse Sarah J. Maas “the world shall be saved and remade
by the dreamers” (em tradução livre: “o mundo há de ser salvo e refeito
pelos sonhadores) e, portanto, é pelo objetivo de um mundo sem exploração
animal que muitos ativistas lutam, fazem protestos, criam documentários,
questionam, esclarecem, fazem palestras, dão aulas etc.
Entretanto, vivendo num mundo humano, existe um grupo de
pessoas chamadas “carnistas” que são os equivalentes para os veganos dos
homofóbicos para os homossexuais, dos xenofóbicos para os imigrantes, dos antivacinas
para o restante da sociedade, e assim por diante. Membros desse grupo têm
diversos argumentos para a necessidade fulcral de derivados de animais para os
humanos, alguns razoáveis, outros nem tanto (basicamente do mesmo modo que
homofóbicos, xenofóbicos e antivacinas também têm seus “argumentos”, na minha opinião). E, é claro,
não é como se a pessoa se rotulasse com esse termo: ela é descoberta, através
de seus pensamentos, falas e atitudes.
Tradução: - Por que você leva o
veganismo de forma tão séria?
- Por que você leva exploração e
massacre de forma tão leve?
Como se tudo isso não bastasse, dependendo dos motivos para
o seu personagem ser vegano, as atitudes das pessoas à sua volta também podem
trazer impactos. Usemos um clássico exemplo: digamos que seu personagem se
tornou vegano por motivos ambientais, pelo planeta. Sabe-se que, por exemplo,
deixar de usar papel por um ano salva cerca de oito árvores e meia. Deixar de
comer carne pelo mesmo período salva 3.432 árvores. Seguindo essa linha de raciocínio,
é possível que esse personagem conclua que é uma hipocrisia que as pessoas à
sua volta parem de usar papel para salvar as árvores enquanto continuam comendo
carne, por mais que seja muito melhor salvar oito árvores e meia do que nenhuma.
Esse raciocínio vale para diversos recursos naturais, como
água doce, terreno próprio para o plantio, vida marinha e fluvial, florestas
etc. Portanto, para esse personagem, todo aquele que continua se alimentando de
derivados de animais também continua contribuindo para o esgotamento desses
recursos. Da mesma forma que também contribui para a fome, poluição, crueldade contra
os animais, desmatamento, destruição de ecossistemas inteiros e únicos, e
diversos outros pontos.
Nesse vídeo
(legendado!) tem bem explicado a parte mais difícil de ser vegan, e tem muito a
ver com a discussão que coloquei aqui, especialmente a naturalização da
exploração animal. Você pode usá-lo como inspiração para compreender melhor as
lutas e conflitos pelos quais seu personagem passa.
Entretanto, também é importante considerar que existe o
outro extremo: o vegano que faz um desfavor ao movimento sendo ignorante,
chato, incapaz de ouvir os argumentos dos outros. Que está mais interessado em
impor seu ponto de vista do que em compartilhá-lo. Que, apenas por sua
filosofia de vida e visão de mundo, acredita ser superior aos seus pares. E é
muito fácil, para qualquer vegano, cruzar essa linha.
Todos nós temos nossos momentos de raiva, dor, incompreensão
e de erros. Isso é ainda mais real para os veganos, que também são julgados
pela sociedade com argumentos: “mas plantas também são seres vivos! Você não
sente dó delas?” ou “é impossível alguém ser verdadeiramente vegano, já
que mesmo nas plantações insetos e larvas são mortos”. E, é claro, seu
personagem vai ouvir esses argumentos brilhantes tantas vezes que vai chegar um
momento de estafa emocional e do fim da paciência, resultando em mais conflito.
Tudo isso que mencionei soma-se aos conflitos que qualquer
pessoa e/ou personagem passa, incluindo os amorosos, de relacionamentos, de
trabalho. Por exemplo: seu personagem teria um relacionamento amoroso sério com
uma pessoa que come carne? Com o/a proprietário/a de um matadouro, de um
frigorífico, de um açougue? Seu personagem trabalharia numa churrascaria? Num
supermercado que também possui fazendas de gado? Num zoológico, rodeio ou
aquário? Seu personagem consumiria os ovos das galinhas da chácara da sogra do
filho da vizinha, onde elas são criadas livremente e sem terem seus bicos
cortados? Mesmo sendo a vizinha um amor de pessoa?
Qual seria o limite do aceitável para esse personagem, caso
a resposta para qualquer uma dessas perguntas seja sim?
Tradução: Nascido para ser selvagem.
Outro ponto a ser considerado, e agora deixo claro que é uma
impressão inteiramente pessoal, é que os veganos sentem uma empatia maior pelos
animais. Esse fato não é comum a todos os veganos, mas eu nunca vi uma pessoa
que come carne chorando com a visão de corpos de vacas e bois pendurados, sem a
pele, cortados pela metade e sem as tripas, já sem a cabeça, nada mais do que
um grande pedaço de carne. Por conta dessa empatia maior, levar um vegano a um
lugar com qualquer tipo de exploração animal, como zoológicos, rodeios, aquários,
aqueles shows com as orcas, ou mesmo filmes em que foram usados animais de
verdade e onde eles sofrem, pode ser uma escolha equivocada, com reações desde
um simples dar de ombros até reações emocionais bem fortes. Não é à toa
que usamos palavras como massacre, exploração e holocausto para nos referirmos
à morte de trilhões de animais para satisfazer o apetite de sociedades mais desenvolvidas
e ricas, enquanto milhões passam fome em sociedades pobres e não desenvolvidas
(e enquanto nossas florestas são queimadas).
Mas é importante deixar claro que a empatia maior é,
normalmente, pelos animais. Também existem muitos veganos sacanas, charlatães,
violentos, babacas etc. O veganismo é uma filosofia de vida que procura acabar
com toda e qualquer exploração animal, mas também não é um passe de “pessoa boa
e confiável”. Seu personagem pode ser o vilão da sua história e ser vegano:
será uma camada a mais de profundidade para ele e um novo desafio para você,
que vai precisar entender como o personagem separa os animais das pessoas, o
que é considerado exploração e o que não é, quais as principais consequências
dessa exploração para o personagem e para a sociedade etc.
Bom, gente, é isso! Lembrando: não estou tentando te
convencer a ser vegetariano ou vegano, nem a incluir personagens assim nas suas
produções (mas fala sério, os dilemas morais e conflitos apresentados aqui
valeriam bons plots!). Toda essa série de posts é apenas uma reunião de
informações e questionamentos para ajudar os autores não veganos que querem
incluir personagens veganos em suas histórias. Espero tê-los ajudado!
Daqui a quinze dias volto com o quarto — e último — post
dessa série: Estereótipos veganos para se evitar.
Boa pesquisa e boa escrita!
See ya!
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