Criando um personagem vegetariano/vegano - O impacto de um personagem vegano no meio de carnívoros

domingo, 4 de outubro de 2020

 

Tradução: Mas de onde você tira sua proteína?

Por: Thalita Gonçalves

Hello, little loafs!

Aqui é novamente a Thalita, para continuar nossa discussão sobre como criar um personagem vegetariano/vegano que seja realista. Já entendemos o vegetarianismo e o veganismo e, se você leu os posts (e, caso não tenha lido, recomendo que os leia antes e depois volte aqui), deve estar pensando que ser vegano é fácil e tranquilo e smooth. Claro, até agora tratamos apenas do personagem enquanto indivíduo, sem estar inserido numa família, nas relações escolares e/ou de trabalho, amizades e inimizades etc.

Esse provavelmente será o menor post, mas também o mais interessante do ponto de vista dos leitores do blog (ou assim espero), já que vou tentar mostrar diversos pontos em que as relações entre pessoas que consomem derivados de animais e veganos podem gerar conflitos. E o que um bom escritor deseja, se não excelentes conflitos para seus personagens?

Antes, porém, todavia, contudo, você deve se lembrar do último post, em que expliquei rápida e superficialmente como funciona o capitalismo e a economia de livre comércio. Nesse post também coloquei que é necessário considerar, para uma análise mais completa, que existem alguns fatores que também influenciam a economia: os impostos; as leis regulatórias; os incentivos fiscais; e, por último, mas não menos importante, a cultura.

Nossa sociedade e cultura são baseadas em exploração animal: carne, couro, leite, ovos, lã, seda, para citar apenas alguns dos principais produtos. Produtores de agricultura têm incentivos fiscais, lobbying e a cultura ao seu favor. Mesmo entre os veganos, não são todos que têm noção das verdadeiras consequências de se consumir derivados de animais para a natureza, para a saúde e para a sociedade. Isso sem falar de toda uma indústria, mídia e propaganda que naturaliza e incentiva o consumo de derivados de animais.

Por isso, qualquer que seja o motivo do seu personagem para ser vegan, ele vai ter que lidar com resistência cultural, independente de classe social e econômica, gênero, religião. É como se fosse um choque cultural, porque enquanto estamos acostumados com uma cultura onde o consumo de derivados e exploração animal são naturais, o veganismo e a pessoa vegana contestam isso em seu cerne: simplesmente não há necessidade.

E esse choque vai se apresentar ao seu personagem mesmo que ele não o provoque. O simples ato de não se alimentar de produtos derivados de animais gera reações, desde as mais simpáticas e baseadas na falta de informação, até as mais ignorantes e baseadas em pura ignorância.

As mais comuns são (não necessariamente nessa ordem):

·         Nem frango?

·         Nem peixe?

·         Nem queijo?!

·         E se os ovos forem de galinhas do quintal do meu/minha *insere parente que tem uma chácara ou fazenda*? Ele/a não maltrata suas galinhas!

·         Então o que você come?

·         E as proteínas?

·         Eu nunca conseguiria! Só de pensar em desistir de *insere derivado de animal*... Não, eu nunca conseguiria.

·         Teve uma vez que fiquei sem comer *insere derivado de animal* por *insere determinado período de tempo*!

Tradução: Ninguém liga para o quanto de proteína que você consome até descobrirem que você é vegan.

Se o seu personagem for menor de idade e mora com a família, e a família não tem a mínima simpatia pelo vegetarianismo, teremos conflitos familiares! Se o seu personagem trabalha numa empresa onde os colegas estão mais ocupados com o salário no fim do mês do que com os amigos, teremos conflitos no trabalho! Se o seu personagem tem “amigos” sacanas, mais interessados na próxima piada ou no próprio umbigo, teremos conflitos na amizade! E assim por diante...

Claro, a vida de um vegano também não é amarga desse jeito e, ocasionalmente, encontramos pessoas que estão verdadeiramente interessadas no movimento ou são simpáticas e apenas querem diminuir seu consumo de derivados de animais, seja pela saúde ou pelo planeta. Na sua história, seu personagem vegano poderá ter uma vida um pouco menos amigável, com várias situações como as descritas acima, ou mais simpática — isso irá depender muito da idade do seu personagem e dos seus círculos de amigos.

Geralmente (apenas lembrando que geralmente não é sinônimo de via de regra), pessoas mais velhas têm um pouco mais de resistência ao movimento vegano e jovens não apenas são simpáticos, como muitas vezes têm uma pontinha de admiração por pessoas veganas. Mais uma vez, acho que não preciso ressaltar que existem inúmeras exceções a esse geralmente.

Se pararmos para pensar no movimento vegano, podemos perceber que seu objetivo envolve a sociedade como um todo: parar completamente com toda e qualquer exploração animal. Não basta apenas um grupo pequeno ser vegano, pois enquanto existir uma única pessoa que explora animais o objetivo do movimento não será alcançado. Claro que pensar desse jeito é ser idealista demais. Mas, como disse Sarah J. Maas “the world shall be saved and remade by the dreamers” (em tradução livre: “o mundo há de ser salvo e refeito pelos sonhadores) e, portanto, é pelo objetivo de um mundo sem exploração animal que muitos ativistas lutam, fazem protestos, criam documentários, questionam, esclarecem, fazem palestras, dão aulas etc.

Entretanto, vivendo num mundo humano, existe um grupo de pessoas chamadas “carnistas” que são os equivalentes para os veganos dos homofóbicos para os homossexuais, dos xenofóbicos para os imigrantes, dos antivacinas para o restante da sociedade, e assim por diante. Membros desse grupo têm diversos argumentos para a necessidade fulcral de derivados de animais para os humanos, alguns razoáveis, outros nem tanto (basicamente do mesmo modo que homofóbicos, xenofóbicos e antivacinas também têm seus “argumentos”, na minha opinião). E, é claro, não é como se a pessoa se rotulasse com esse termo: ela é descoberta, através de seus pensamentos, falas e atitudes. 

Tradução: - Por que você leva o veganismo de forma tão séria?

- Por que você leva exploração e massacre de forma tão leve?

Como se tudo isso não bastasse, dependendo dos motivos para o seu personagem ser vegano, as atitudes das pessoas à sua volta também podem trazer impactos. Usemos um clássico exemplo: digamos que seu personagem se tornou vegano por motivos ambientais, pelo planeta. Sabe-se que, por exemplo, deixar de usar papel por um ano salva cerca de oito árvores e meia. Deixar de comer carne pelo mesmo período salva 3.432 árvores. Seguindo essa linha de raciocínio, é possível que esse personagem conclua que é uma hipocrisia que as pessoas à sua volta parem de usar papel para salvar as árvores enquanto continuam comendo carne, por mais que seja muito melhor salvar oito árvores e meia do que nenhuma.

Esse raciocínio vale para diversos recursos naturais, como água doce, terreno próprio para o plantio, vida marinha e fluvial, florestas etc. Portanto, para esse personagem, todo aquele que continua se alimentando de derivados de animais também continua contribuindo para o esgotamento desses recursos. Da mesma forma que também contribui para a fome, poluição, crueldade contra os animais, desmatamento, destruição de ecossistemas inteiros e únicos, e diversos outros pontos.

Nesse vídeo (legendado!) tem bem explicado a parte mais difícil de ser vegan, e tem muito a ver com a discussão que coloquei aqui, especialmente a naturalização da exploração animal. Você pode usá-lo como inspiração para compreender melhor as lutas e conflitos pelos quais seu personagem passa.

Entretanto, também é importante considerar que existe o outro extremo: o vegano que faz um desfavor ao movimento sendo ignorante, chato, incapaz de ouvir os argumentos dos outros. Que está mais interessado em impor seu ponto de vista do que em compartilhá-lo. Que, apenas por sua filosofia de vida e visão de mundo, acredita ser superior aos seus pares. E é muito fácil, para qualquer vegano, cruzar essa linha.

Todos nós temos nossos momentos de raiva, dor, incompreensão e de erros. Isso é ainda mais real para os veganos, que também são julgados pela sociedade com argumentos: “mas plantas também são seres vivos! Você não sente dó delas?” ou “é impossível alguém ser verdadeiramente vegano, já que mesmo nas plantações insetos e larvas são mortos”. E, é claro, seu personagem vai ouvir esses argumentos brilhantes tantas vezes que vai chegar um momento de estafa emocional e do fim da paciência, resultando em mais conflito.

Tudo isso que mencionei soma-se aos conflitos que qualquer pessoa e/ou personagem passa, incluindo os amorosos, de relacionamentos, de trabalho. Por exemplo: seu personagem teria um relacionamento amoroso sério com uma pessoa que come carne? Com o/a proprietário/a de um matadouro, de um frigorífico, de um açougue? Seu personagem trabalharia numa churrascaria? Num supermercado que também possui fazendas de gado? Num zoológico, rodeio ou aquário? Seu personagem consumiria os ovos das galinhas da chácara da sogra do filho da vizinha, onde elas são criadas livremente e sem terem seus bicos cortados? Mesmo sendo a vizinha um amor de pessoa?

Qual seria o limite do aceitável para esse personagem, caso a resposta para qualquer uma dessas perguntas seja sim

Tradução: Nascido para ser selvagem.

Outro ponto a ser considerado, e agora deixo claro que é uma impressão inteiramente pessoal, é que os veganos sentem uma empatia maior pelos animais. Esse fato não é comum a todos os veganos, mas eu nunca vi uma pessoa que come carne chorando com a visão de corpos de vacas e bois pendurados, sem a pele, cortados pela metade e sem as tripas, já sem a cabeça, nada mais do que um grande pedaço de carne. Por conta dessa empatia maior, levar um vegano a um lugar com qualquer tipo de exploração animal, como zoológicos, rodeios, aquários, aqueles shows com as orcas, ou mesmo filmes em que foram usados animais de verdade e onde eles sofrem, pode ser uma escolha equivocada, com reações desde um simples dar de ombros até reações emocionais bem fortes. Não é à toa que usamos palavras como massacre, exploração e holocausto para nos referirmos à morte de trilhões de animais para satisfazer o apetite de sociedades mais desenvolvidas e ricas, enquanto milhões passam fome em sociedades pobres e não desenvolvidas (e enquanto nossas florestas são queimadas).

Mas é importante deixar claro que a empatia maior é, normalmente, pelos animais. Também existem muitos veganos sacanas, charlatães, violentos, babacas etc. O veganismo é uma filosofia de vida que procura acabar com toda e qualquer exploração animal, mas também não é um passe de “pessoa boa e confiável”. Seu personagem pode ser o vilão da sua história e ser vegano: será uma camada a mais de profundidade para ele e um novo desafio para você, que vai precisar entender como o personagem separa os animais das pessoas, o que é considerado exploração e o que não é, quais as principais consequências dessa exploração para o personagem e para a sociedade etc.

Bom, gente, é isso! Lembrando: não estou tentando te convencer a ser vegetariano ou vegano, nem a incluir personagens assim nas suas produções (mas fala sério, os dilemas morais e conflitos apresentados aqui valeriam bons plots!). Toda essa série de posts é apenas uma reunião de informações e questionamentos para ajudar os autores não veganos que querem incluir personagens veganos em suas histórias. Espero tê-los ajudado!

Daqui a quinze dias volto com o quarto — e último — post dessa série: Estereótipos veganos para se evitar.

Boa pesquisa e boa escrita!

See ya!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O blog da Liga é um espaço para ajudar os escritores iniciantes a colocarem suas ideias no papel da melhor maneira possível.



As imagens que servem de ilustração para o posts do blog foram encontradas mediante pesquisa no google.com e não visamos nenhum fim comercial com suas respectivas veiculações. Ainda assim, se estamos usando indevidamente uma imagem sua, envie-nos um e-mail que a retiraremos no mesmo instante. Feito com ♥ Lariz Santana