Como Retratar Corretamente Relacionamentos Abusivos - 3/5

segunda-feira, 25 de março de 2019


Por: Musa


Bem-vindos, queridos leitores. Estou de volta com a continuação dessa série de utilidade pública para nos ajudar a retratar corretamente relacionamentos abusivos na escrita.

Até agora, aprendemos como escrever relacionamentos saudáveis e o ciclo do abuso. Tudo isso para termos uma ideia generalizada de como esse tipo de relações funciona e como distingui-las das saudáveis ou apenas disfuncionais.

Neste post, vou estar explicando os tipos de abuso, pois é. Existem vários tipos, uma relação abusiva pode funcionar de várias maneiras e ter mais que um tipo de abuso em simultâneo. Tudo vai depender do tipo de abusador que você pretende escrever, assim como o tipo de relação que ambos os personagens têm.

A importância deste post não é descrever as reações da vítima e do abusador ao exercer ou sofrer os diferentes tipos de abuso, e sim compreender do que se trata e o que os torna abusivos em vez de apenas casos isolados ou disfuncionais. A mentalidade da vítima e do abusador por trás ou após o abuso é algo muito complexo que deverá ser desenvolvido através da pesquisa do autor.

Existem várias niches de abuso e algumas delas podem ser incluídos em tipos mais abrangentes. Então vou resumir no seguintes: Abuso Emocional, Abuso Físico, Abuso Sexual, Abuso Financeiro e Abuso Espiritual.

Vamos lá!


Abuso Emocional

Há uma razão porque decidi abordar este tipo primeiro:

Ao contrário dos outros tipos de abuso, que são facultativos para constituir uma relação abusiva, o abuso emocional não pode, de jeito nenhum, não existir. Este tipo está na génese de qualquer relacionamento abusivo. Sem ele, não existe o abuso nem a possibilidade do abuso manter-se.

Como falei no post anterior, o ciclo de abuso é constituído por um abuso emocional integrado. Ele é o combustível deste tipos de relacionamento. Ou seja, se você se pergunta se a relação que escreve é abusiva, disfuncional, ou apenas mal escrita, tem que começar pelo abuso emocional e se ele está ou não presente, se está ou não desenvolvido.

Portanto, comece por ele.

Os outros tipos de abuso são apenas maneiras que o abusador procura para atingir a vítima de formas em que o emocional não é suficiente, ou é aquele que consolida ou banaliza as atitudes dos outros tipos de abuso. É aquele que quebra e molda a vítima ao gosto do abusador.

O abuso emocional é constituído ou realizado através de outros tipos mais pequenos, como o verbal. O abusador usa palavras como armas para a vítima, ela começa a acreditar nas suas mentiras; fazendo-a acreditar que é estúpida, doida, que ninguém a vai querer, que ninguém a ama/aguenta. Isso pode existir na vítima antes, e o abusador aproveitar-se, ou podem ser inseguranças que são inseridas na vítima após ouvi-lo por tanto tempo. Estas mentiras vão deixar a vítima isolada, pois ninguém a quer por perto, ou impossibilitá-la de falar acerca do seu abuso, por pensar que merece ou é doida e está exagerando.

Não apenas por palavras, pequenas ações ajudam a promover este abuso. Coisas como mover pertences da vítima e dizer que sempre estiveram ali, negar que certas coisas aconteceram, diminuir ou distorcer as palavras da vítima — especialmente se está queixando-se de algo que o abusador fez. Acontece através de um sistema longo e consistente, vai fazer a vítima duvidar da sua própria sanidade. O que gera mais isolamento ou fá-las sentir que ninguém vai acreditar nelas se falar no que está acontecendo, afinal elas nem se lembram onde deixaram as chaves de casa, não é mesmo?

Muito se pode dizer sobre este tipo de abuso e a sua importância, apenas saiba que não pode esquecer-se dele, pois é a cola que deixa tudo juntinho.

Quando for escrever um relacionamento abusivo sem desenvolver uma base cíclica, constante e bem fundada em abuso psicológico e/ou emocional, os seus relacionamentos abusivos vão parecer superficiais e não acreditáveis.

Este é o abuso que vai seguir a vítima por mais, tempo, o físico, sexual, financeiro, são palpáveis e visíveis, podemos afastar a pessoa que magoa a vítima e terminá-los. Porém o emocional permanece, por vezes permanentemente, muito depois da vítima sair da situação. Ele vai moldar o trauma e sua mentalidade dali para a frente.

Então pesquise muito sobre, não pense que pode adivinhar o que é passar sobre esse tipo de abuso sem tê-lo vivido; e desenvolva-o antes de qualquer outro.


Abuso Físico

Este é o mais visível e, normalmente, aquele em que pensamos quando vemos a palavra “abuso”. Às vezes, até mesmo relações que não envolvem este tipo de abuso nem são consideradas abusivas ou “abusivas o suficiente”.

Não existe muito a dizer sobre o que acontece no abuso físico, ele inclui machucar alguém com ou sem objetos (atirar coisas como vasos, usar armas, etc.); também inclui sufocar, invadir o espaço pessoal e até mesmo a ameaça de comprometer a integridade física da vítima através de coisas como conduzir sem cuidado, tornar os espaços onde ela se encontra inseguros, escorregadios, tóxicos, tudo o que é deliberadamente feito pelo abusador para magoar a vítima fisicamente é considerado abuso físico.

A violência pode estar presente em várias situações e relações, o que a torna abusiva é haver claramente uma vítima e um abusador consistentemente, no caso, não quer dizer que a vítima não retalie uma vez ou outra, mas ela sempre sai com um castigo muito maior se se atreve a fazê-lo. Também existe o facto que a violência é usada pelo abusador como demonstração de uma frustração por não conseguir o que quer da vítima através dos métodos não violentos (abuso emocional). Ou talvez seja o abuso físico nascente de problemas em lidar com a raiva, consumo de substâncias, e então o abuso emocional segue-se para que o comportamento seja banalizado.

O que se deve ter em consideração descrevendo abuso físico é encontrar a lógica que o seu abusador tem para usá-lo, por que ele o usa? Em que situações? Como ele faz depois de um episódio para que a vítima permaneça com ele? Quais os seus gatilhos? Como ele justifica fazer isso para si mesmo? Isso são tudo particularidades de uma relação abusiva, em oposição à violência disfuncional ou entre estranhos e rivais, que não tem um cariz manipulador e cíclico.

Portanto, quando escreve abuso físico, tenha em consideração que este é visível e portanto terá que trabalhá-lo muito bem para a vítima permanecer com o abusador ou os amigos e família não intervirem.


Abuso Sexual

O Abuso sexual merece estar numa categoria diferente do físico pelos componentes altamente emocionais, o cariz único sentimental que existe no ato sexual e a maneira como está diretamente relacionado com a autonomia da vítima.

Ele pode existir em qualquer tipo de relação abusiva, qualquer dinâmica ou natureza da relação. E o trauma é diferente para as vítimas de contextos diferentes, abuso sexual entre familiares e entre parceiros românticos vai gerar uma miríade de sentimentos distintos que devem ser estudados separadamente dependendo do que for tratar.

Pesquise sobre a experiência da vítima na perspectiva do papel que o abusador tem na vida dela, pois influencia muito o trauma.

Este tipo de abuso existe, como muitos sabem, através da violação, o ato sexual não consentido. Novamente, de uma maneira abusiva, isto acontece sempre com uma vítima e um abusador, os papéis não mudam, pois numa relação abusiva o poder está bem estabelecido.

Da mesma forma que o abuso físico, o abusador pode usar o sexo como uma arma para manipular e desarmar a vítima de formas que o abuso emocional não consegue. Isto é, fazê-la sentir que sexo é tudo para que serve, que não tem o direito de dizer não pois o sexo é um direito (comum em casos de relacionamentos românticos abusivos, especialmente entre personagens casados), ou também forçar situações ou atos sexuais que a vítima não deseja ou sente-se confortável a fazer pois é o que precisa para satisfazer o parceiro e humilhá-la se não conseguir ou quiser fazê-los.

A pressão para ser melhor no sexo, que nunca é bom suficiente, também faz parte do abuso sexual. O ato sexual é sempre, de um jeito ou outro, íntimo e repleto de reações biológicas e emocionais automáticas do nosso corpo. O que gera sentimentos muito confusos e nocivos para uma vítima de abuso sexual, pois algo inerentemente relacionado à autonomia da pessoa está sendo usado contra ela, está sendo roubado dela.

Isso gera um trauma complicado com repercussões complexas e profundas. Mais uma vez, se você nunca foi vítima de abuso sexual, não tente adivinhar o que passa pela cabeça de quem foi, pesquise diretamente a história de vítimas da boca delas para poder narrar melhor este tipo de trauma.


Abuso Financeiro

Afinal, a partir do momento que sua história se passa num universo capitalista, o dinheiro dita muita coisa acerca da independência e liberdade de uma pessoa. E é de esperar que um abusador fosse querer tirar partido disso ou controlar essa vertente da vida da vítima.

É algo mais comum em casais e relacionamentos abusivos entre pais e filhos. Pois normalmente existe uma partilha de bens ou dependência econômica entre ambos.

Para além disso, tem que se entender que esta dependência econômica é muitas vezes o que impede a vítima de sair da relação. 

Como funciona? De várias maneiras, o abusador pode impedir a vítima de arranjar um trabalho e consequentemente deixar todos os fardos financeiros a seu cuidado. Também pode não deixar a vítima ter acesso à sua conta bancária ou ter algum poder de decisão sobre o orçamento ou finanças, isto pode ser usado como abuso emocional ao fazer a vítima sentir-se incompetente para tais tarefas.

Também pode o abusador entrar em dívidas em nome da vítima, arruinando a sua situação econômica, o que pode impedi-la de arranjar nova habitação, transporte, ou fugir.

Este é um tipo de abuso muito materialista, o trauma que resulta dele normalmente é apenas associado ao emocional. Ele arruína as coisas materiais para a vítima, e não tanto o seu interior por si. Mas não deixa de ser um fator importante pensar na situação econômica dos seus personagens quando for escrever e como interfere com o ciclo abusivo.


Abuso Espiritual

Também pode ser conhecido como abuso religioso ou cultural, é encontrado em relações onde um ou ambos os personagens possui crenças religiosas, superstições ou uma cultura diferente ou iguais ao abusador.

É um sistema abusivo de comportamentos contínuos onde o abusador ridiculariza, banaliza e humilha a vítima na procura da sua espiritualidade, ou comportamentos religiosos e culturais, fazendo-a sentir-se mais isolada. Também acontece o abusador não permitir que a vítima participe de eventos culturais particulares dela, ou ir na igreja ou local de adoração específico. Como mencionado, é uma técnica para deixar a vítima isolada e retirar o lugar de Deus da sua vida, assim como afastá-la da sua comunidade para não haver espaço para alguém acima do abusador na vida dela.

Outra maneira que o abuso se manifesta é a contrária, se o abusador também é religioso ou parte de uma cultura igual à da vítima. Ele pode constantemente usar suas crenças para manipular a vítima, fazê-la sentir que o que faz para adorar o seu Deus ou honrar seus anciãos nunca é suficiente. É muito comum entre pais e filhos, por exemplo.

Também é possível o abusador usar a parte da identidade da vítima como ameaça, no sentido ameaçar revelá-la para pessoas que não sabem ou podem colocá-la numa posição de perigo.

Isto faz a vítima sentir-se em constante dívida para com Deus e sua cultura. O que a torna fácil de convencer a fazer coisas que o abusador quer para aliviar essa sensação.



É tudo por esse post. Podemos compreender as várias maneiras como o abuso se manifesta, tendo em consideração que o abuso emocional é o único que terá que estar sempre presente para constituir uma relação abusiva.

Entendemos também que para tratarmos estes comportamentos como abusivos em vez de casos de violência isolados, eles têm que acontecer consistentemente, por algum período de tempo com um ciclo semelhante ao que mencionamos no post anterior.

Espero que tenham gostado, nos vemos no próximo!

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