Coluna: A problemática dos relacionamentos abusivos, manipulação emocional e sua abordagem em livros, quadrinhos e mangás

sábado, 20 de fevereiro de 2021
Por: Aelin
 
 

As colunas são parte da programação semanal do Blog da Liga dos Betas, são artigos de opinião em que colunistas fixos e convidados irão discorrer sobre os mais variados temas no mundo da escrita, literatura e fanfic. Agradecimentos especiais a beta Aelin pela coluna desta semana.

 

Olá, você!

Recentemente, gravei uma resenha sobre Teto para Dois, da Beth O’Leary, e o desenvolvimento da personagem principal me inspirou a escrever essa coluna. 

Falaremos, então, sobre as relações tóxicas e o modo que os autores escolhem exaltar ou condenar os abusadores.

 

“Você não pode me fazer acreditar em uma coisa que sei que não é verdade.”

O'LEARY, Beth; Teto para Dois (2019)

 

Teto para Dois mostra o caminhar lento de uma mulher muito machucada em direção à cura. No início, Tiffy assume que não confia muito em si mesma e que está confusa demais para assimilar tudo de uma vez só; perto do fim, fala sobre o quanto aprendeu e que consegue enxergar coisas que não via antes.

Sob a visão de Tiffy, podemos enxergar uma mulher que foi manipulada ao ponto de questionar suas próprias memórias. E — por Deus! — é impossível perdoar Justin por apagar o brilho de uma personagem tão cheia de vida.

A autora demonstra as sequelas deixadas na vida de Tiffy através do seu comportamento — a personagem é incapaz de dizer ‘não’ para Justin muitas vezes — e fluxo de pensamentos. Mas, felizmente, os seus amigos oferecem uma rede de apoio e ela conta com a ajuda de uma psicóloga, também. É, no geral, uma mulher sortuda e consegue pouco a pouco enxergar o mal que o ex-namorado lhe fazia. Apesar de apresentar algumas situações que podem evocar gatilhos, a força de vontade de Tiffy é exaltada a cada página e a personagem comemora cada pequena vitória.

Mas, apesar de ter apontado Teto para Dois como um exemplo positivo, é preciso refletir: todas as obras abordam relações tóxicas de maneira responsável?

 

“Deve ter visto algo em mim que me fazia como os outros; talvez estivesse escrito em minha alma que eu fora egoísta a ponto de fazer outra mulher tirar a própria vida para [eu] ter quem amava.”

KATSU, Alma; Ladrão de Almas (2011)

 

Em Ladrão de Almas, a autora cria uma rede infinita de relações tóxicas e personagens cruéis. O livro possui dois pontos de vista — 1ª pessoa, na visão de Lanore, e 3ª pessoa — e conta a história de Lanore, Luke e Adair. A narração alterna entre o presente, o passado (as lembranças de Lanore) e o passado anterior a 1809 (as memórias de Adair dentro das lembranças de Lanore).

Em um primeiro momento, somos apresentados ao primeiro amor de Lanore: Jonathan St. Andrew. O jovem é herdeiro da família que fundou a cidade que vivem e possui uma beleza descrita como inigualável. Os dois se tornam amigos e ele abusa do amor de Lanore, engravidando-a e fazendo com que seja mandada para um convento em Boston para ter o bebê. Recusando-se a abrir mão da única prova do amor de Jonathan, Lanore foge do convento e, em seu desespero, aceita ajuda de Adair e sua trupe.

 

“Alguma vez já pensou que a única coisa que mantém o demônio sob controle é o fato de ele saber o quanto é desprezado?”

KATSU, Alma; Ladrão de Almas (2011)

 

Nas mãos de Adair, Lanore conhece um tipo de diferente de amor e as consequências que a desobediência traz. A vida eterna lhe parece uma benção no início, mas, vulnerável somente a Adair, Lanore passa a se questionar se não seria uma grande maldição.

O livro exibe cenas de violência e abuso extremamente pesadas que podem deixar o leitor bastante desconfortável; fora isso, temos o fluxo de pensamentos e ações que guiam a história para locais sombrios e nos fazem questionar se toda essa violência e maldade é realmente necessária.*

Podemos dizer, então, que a abordagem de Alma Katsu em Ladrão de Almas poderia ter sido melhor. Talvez, se colocado de outra maneira, o leitor mentalmente danificado não acabasse chorando encolhido no chão do banheiro, como aconteceu comigo.

 

 “Às vezes, me esqueço de que nem sempre os pais são… bons para os filhos.”

FLYNN, Gillian; Objetos Cortantes (2015)

 

Mas não só de relações amorosas vive o homem, é óbvio.

Em Objetos Cortantes, que será o tema da minha primeira resenha para o blog, podemos observar relações tóxicas vividas dentro do núcleo familiar. O livro nos permite ver Wind Gap sob a ótica de Camille Preaker — uma repórter que retorna para sua cidade natal depois de oito anos para investigar o assassinato de uma garotinha e o desaparecimento de outra, sendo obrigada a viver mais uma vez sob o teto da mãe neurótica — e o que vemos não é nada bom.

Durante a sua estadia, Camille é forçada a lidar com situações estressantes e desconcertantes e sofre nas mãos da mãe, da irmã e do padrasto enquanto tenta se concentrar em encontrar o responsável pelos crimes. As descobertas a levam cada vez mais para o fundo do poço e ela busca alívio no álcool, evitando as lâminas que marcaram a sua pele durante boa parte da vida.

As marcas que a convivência com Adora deixou em Camille vão muito além da sua tendência à automutilação, refletindo no modo como bebe a plena luz do dia, se envolve com homens de caráter duvidoso e possui pouca ou nenhuma autoestima. No caso de Amma, o resultado foi muito diferente: a garota não carrega palavras em sua pele, mas exibe um comportamento agressivo e maldoso.

Sou extremamente suspeita para falar, mas acho que a autora atingiu o seu propósito retratando personagens tão danificadas. O ponto, no final, era demonstrar que uma criança criada num ambiente tão tóxico não pode se desenvolver apropriadamente. Tanto para Camille quanto para Amma, a teoria foi provada.

Mas, afinal, por que é necessário abordar a toxicidade dos personagens de maneira responsável?

Em Esquadrão Suicida (filme), vemos que um relacionamento tóxico foi capaz de arruinar a vida e carreira da renomada psiquiatra Harleen Quinzel. A doutora se transformou em uma criminosa obcecada pelo palhaço do crime, seguindo-o como um maldito cachorrinho mesmo depois dele tê-la empurrado num tanque cheio de produtos químicos e a deixado para morrer afogada depois de jogar o carro que estavam na água.

Nos quadrinhos e na série animada, a situação é bem pior para Quinn. Por diversas vezes o palhaço espanca a namorada, tenta matá-la ou simplesmente a abandona em situações de extremo perigo. Quando Quinn já está participando do Esquadrão Suicida, o Coringa chega a amarrá-la no interior de uma masmorra e diz que ela não foi a primeira Arlequina, nem será a última. 

 

 

(Não tenho certeza, mas acho que é nessa edição que ela acaba comendo os próprios pulsos para escapar e volta para o Esquadrão Suicida)

Mas, apesar disso, quando o filme do Esquadrão Suicida foi lançado, as pessoas adoraram ver a personagem de Margot Robbie fazendo par com o Coringa. O público jovem, principalmente, insistia que os atos descritos no filme eram românticos e que as ações de Quinn eram por sua própria vontade, quando, na verdade, a manipulação emocional que o Coringa trouxe desde o Asilo Arkham é que a levou à loucura.

Quando exaltamos um personagem manipulador e tóxico, o público acredita que é um padrão a ser seguido. De uma forma ou de outra, admiramos aquilo que vemos e é por isso que não podemos contribuir para o mercado de personagens problemáticos.

Mais para frente, caso a oportunidade surja, farei um post falando única e exclusivamente sobre a representação do casal Coringa e Arlequina nas adaptações e como eu sinto vontade de furar meus olhos com agulhas de tricô a cada vez que alguém exalta os dois juntos.

Por fim, quero fazer menção honrosa a alguns pares que não receberam o devido destaque porque se não eu nunca pararia de escrever e o revisor do texto me enforcaria em praça pública.

Na literatura, podemos citar a relação conturbada entre Charlie e Riley (Garota em Pedaços), a crueldade de Arobynn com Celaena (Trono de Vidro), o amor doloroso de Lily e Riley (É Assim que Acaba), o comportamento controlador de Christian sobre Anastasia (50 Tons de Cinza), a amizade tóxica de Amma e Jodes (Objetos Cortantes), o casamento falido de Nick e Amy (Garota Exemplar), a pobre Uzra sofrendo uma vida de tormentos nas mãos de Adair (Ladrão de Almas) e mesmo o relacionamento complicado entre Lanore e Jonathan (Ladrão de Almas).

No universo dos mangás, aponto a personalidade horrorosa do Kyouya no início e de como ele trata a Erika literalmente como um cachorro (Ookami Shoujo to Kuro Ouji), o bullying fodido que o Ishida fez com a Nishimiya quando eram crianças (Koe no Katachi) e o tratamento que o Caesar dá à Nakaba quando os dois se conhecem (Reimei no Arcana).

No mundo das séries/filmes, é impossível não citar o amor doentio de Joe por Guinevere (Você), a relação entre Joe e Love (Você) e a cena perturbadora em que Noah se pendura na roda gigante e ameaça se matar caso Ellie não aceite sair com ele (Diário de Uma Paixão).

Nem todas as obras que eu citei acima apresentam o relacionamento abusivo como deveriam — livre de romantizações e com algum propósito além de preencher folha —, mas podem se tornar uma base de reflexão para pensar se você, escritor amador e/ou consumidor desse tipo de conteúdo, está realmente aprendendo algo ou apenas absorvendo o pior daquela arte.

Bom, é isso! Espero que tenham gostado do texto!

Se tiverem dúvidas ou só quiserem comentar sobre algum livro/mangá/filme/série que retrate o tema, podem comentar aí embaixo que eu vou adorar responder.

Tchau, tchau!

 

*Por mais que eu tenha criticado a abordagem usada pela Alma Katsu, quero deixar claro que eu gosto muito da trilogia e é bem fácil me pegar falando bem dos livros.

A sequência é muito problemática e algumas coisas poderiam ser melhores, mas eu admiro a autora por ter me feito amar profundamente um personagem que é tão terrível em sua essência. Não recomendo para pessoas mais sensíveis, de qualquer forma.

 

 Livros:

     Objetos Cortantes (Camille e Adora)

     Teto para Dois (Tiffy e Justin)

 

Séries/Filmes/HQ

     Esquadrão Suicida (Arlequina e Coringa)

 

2 comentários:

  1. Texto muito necessário!!! Absorvemos os padrões de relacionamento da ficção e fica muito mais (MUITO MAIS) difícil saber diferenciar abuso de afeto, tanto em relação a nós mesmos quanto a pessoas próximas, quando eles estão interligados tão profundamente e frequentemente nas histórias que encontramos.

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    1. Obrigado pela sua leitura, Monique! Exato, precisamos saber diferenciar quando o autor quer passar uma mensagem dizendo que aquela situação retratada é algo altamente nocivo e quando o escritor simplesmente faz uma romantização superficial. Forte abraço!

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