Como criar personagens com múltiplas personalidades

domingo, 28 de junho de 2020

Por: Helena Braun

Olá, pessoas! Como vocês estão?

Sou Bruna, sou graduanda do quarto período de Psicologia e estou estreando no Blog da Liga logo para falar do tão falado e complexo “transtorno de personalidade múltipla”.

Primeiramente, acho importante trazer que, hoje em dia, o termo mais adequado seria Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) ― muito técnico, né? Eu sei, mas vai fazer sentido porque vou usá-lo depois. Sobre o manual, existem diversas controvérsias a respeito da estereotipia e, por vezes, “patologização excessiva” que ele propiciaria, mas vou usá-lo para escrever esse post porque muitas versões são de fácil acesso online, e ele é muito completo na descrição de sintomas e características, o que pode ser muito útil.

Ao longo dos anos, várias obras trouxeram o TDI como tema principal ou secundário de suas narrativas e como característica fundamental de seus personagens ― o que popularizou muito o transtorno e nos deixou envolvidos em vários plot twists, né não? O Médico e o Monstro, Clube da Luta, Psicose, Fragmentado, etc etc etc. Eu suponho que isso se dê ao apelo dramático que a condição muitas vezes traz para as histórias, que, na maioria das vezes, não têm necessariamente tanto interesse em promover uma maior compreensão sobre os transtornos mentais.

É sobre isso que eu queria discutir, antes de partir para a parte boa da criação de personagens: liberdade poética versus responsabilidade cívica. Eu, como beta, leitora e, por vezes, autora amadora sou 100% a favor da total liberdade poética e liberdade de expressão como um todo e entendo que, às vezes, ela venha acompanhada de temas bem delicados da nossa sociedade. Como leitora, por exemplo, diversas vezes me peguei lendo romances que, se analisados friamente, estabelecem-se na história como extremamente abusivos ― narrativas de vida com as quais eu, obviamente, não compactuo. Nesse sentido, entendo que a utilização de transtornos mentais pode servir para deixar mais intenso tanto o enredo quanto o personagem ― em Clube da Luta (spoiler alert), quem já leu/assistiu sabe que é o grande plot twist da história!

A reflexão que eu queria trazer, no entanto, é se essa representação em massa não demonstra certo fetichismo e romantização dessas experiências que podem causar tanto sofrimento psíquico em quem as vivenciam, sabe? Especialmente quando feita de maneira “livre demais” e, às vezes, um pouquinho irresponsável. No caso do TDI, como estamos tratando, em muitos exemplos ficcionais os personagens cometem altos crimes, chegando até a assassinatos, quando, na verdade, o mais comum é que sejam pacientes que escondam seu sofrimento mental e tenham tendência mais autodestrutiva que agressiva (o que, é claro, não é regra).

Além disso, vale ressaltar que essa fragmentação geralmente se dá como mecanismo de defesa consequente de um grande trauma psíquico, muitas vezes relacionado à abuso (infantil, inclusive) físico, emocional e sexual. Geralmente o transtorno vem acompanhado de imensa confusão mental, alterações no senso de identidade própria, alterações na percepção, lapsos de memória, dentre muitos outros sintomas que, obviamente, causam (e são causados por) extremo sofrimento.

Dito isso, espero ter plantado em vocês a sementinha da “de que forma eu posso tornar esse meu personagem mais realista e menos fetichizado?”, ou até mesmo “por que realmente eu quero um personagem com TDI? Tem a ver com o background de vida dele ou eu só quero usar e abusar da possibilidade de ter múltiplas personalidades?” ― o que estaria tudo bem, também, afinal quem nunca, né não? E agora vamos para as diquinhas:

De acordo com o DSM-5, que já mencionei, o TDI vai se caracterizar pela presença de dois ou mais estados distintos de personalidade (ou, dependendo da cultura, uma experiência de possessão) e episódios recorrentes de amnésia dissociativa.

Não vou entrar em detalhes quanto aos critérios diagnósticos porque não vêm tanto ao caso, mas as principais formas como essa experiência é relatada (ainda de acordo com o manual) são:

1) Alterações ou descontinuidades repentinas no senso de si mesmo e de domínio das próprias ações: muitas vezes é relatada uma sensação de despersonalização (como se você tivesse se vendo de fora do seu corpo); a escuta de vozes (que podem ser de um alter ego específico, como uma criança, um homem, uma mulher, ou um conjunto de vozes, ou até uma “entidade espiritual”, etc etc etc), geralmente vivenciadas como pensamentos independentes e incontroláveis; impulsos e ações que emergem repentinamente, também sem controle; dentre outras coisas.

2) Amnésias dissociativas frequentes (muito comum nos casos): podem vir como lacunas de memórias de longo prazo (e, muitas vezes, de momentos muito importantes da vida do indivíduo); lapsos de memória recente (tipo o que fez hoje, o que cozinhou, etc); descoberta de ações que supostamente teriam feito, mas das quais não se lembram; dentre outras situações.

Agora, saindo um pouco do Manual, que já é, por si só, bastante discutido dentro da Psicologia, acho que o que eu mais aconselharia para quem quer construir uma história que traga como característica do personagem o TDI é a leitura/escuta de relatos reais de pessoas que vivem com o transtorno.

Não tenho como afirmar a veracidade de todos os relatos que são encontrados online, mas li recentemente um livro fantástico (Hoje eu sou Alice), escrito pela própria Alice, que fala sobre a experiência dessa mulher, que sofreu diversos abusos inimagináveis na infância e que desde então vem tentando sobreviver com os traumas e as consequências que eles a trouxeram. Além dele, eu assisti à entrevista de uma mulher chamada Truddi Chase que também relata uma história impressionante, também muito boa. E, para quem quer o apelo criminal, tem o caso de Billy Milligan, que cometeu três estupros, e foi diagnosticado com TDI durante seu julgamento (o que, vale ressaltar para os fãs de romance policial, também rendeu várias polêmicas). Do Billy, entretanto, são relatos sobre ele, e não relatos dele, o que para mim faz toda diferença na hora de criar um personagem.

E é isto, galera. Espero ter ajudado de alguma forma, mas a verdade é que, na hora de se falar de mente, não existem regras ou fórmulas de construção, porque quase tudo que você imaginar provavelmente já foi vivenciado por alguém. O que eu quis trazer de primordial aqui foi: estudem na hora de criar seus personagens, mores, especialmente se eles vierem com características muito alheias à sua própria experiência de vida. Deem uma pesquisadinha, leiam relatos, leiam críticas dos filmes que vocês curtem sobre o transtorno X e depois mandem o link da fanfic para a gente que eu já estou querendo ler de agora.


3 comentários:

  1. Ai! adorei esse post! Já me deu altas ideias! Muito obrigada ;)

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  2. Estou pretendendo criar um personagem com esse transtorno, mas estou com medo, pois é algo delicado...
    Gostei muito do post, vai ser de grande ajuda, muito obrigada!

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