Por: Elyon Somniare
Em 2012 Neil Gaiman discursou para os alunos da University of the Arts que se licenciavam. A sua mensagem tornou-se tão popular que os comentários pipocaram, traduções foram feitas e quadradinhos foram desenhados. Pessoalmente, posso dizer já ter seguido o(s) conselho(s) presente(s) nestas palavras, com resultados que muito me agradaram, e que pretendo continuar a segui-lo(s): além de ajudar à arte, ajuda à pessoa. E essa – arte e ser humano – é uma colaboração que nunca deve ser perdida de vista. Assim, apesar de ser já um discurso antigo e de provavelmente existirem outras traduções em português, considerei que tanto o blog quanto os seus leitores ficariam mais enriquecidos com um lembrete sobre a existência deste discurso. Devido, contudo, ao seu tamanho, terei de infelizmente o dividir em três partes. Eis a primeira dessas partes:
“Nunca esperei encontrar-me a aconselhar pessoas que se licenciam de um estabelecimento de educação superior. Eu próprio nunca me licenciei de nenhum estabelecimento do tipo. Nunca cheguei, sequer, a entrar num. Escapei da escola assim que pude, quando a perspectiva de mais quatro anos de ensino forçado antes de me poder tornar o escritor que desejava ser era sufocante.
Saí para o mundo, escrevi, e tornei-me um melhor autor à medida que escrevia mais; e escrevi mais um pouco, e ninguém nunca se pareceu importar por eu estar a inventar à medida que avançava, simplesmente liam o que eu escrevia e pagavam por isso, ou não pagavam, ou, com frequência, davam-me comissões para lhes escrever outra coisa qualquer.
O que me deixou com um respeito saudável e um carinho pela educação superior de que os meus amigos e familiares que frequentaram universidades já foram curados há muito tempo.
Olhando para trás, tenho tido uma viagem memorável. Não tenho a certeza se lhe posso chamar uma carreira, porque uma carreira implica que eu tenha tido algum tipo de plano de carreira, e eu nunca o tive. O mais próximo que tive foi uma lista que fiz quando tinha quinze anos de tudo o que queria fazer: escrever um romance adulto, um livro de crianças, uma comic, um filme, gravar um audiobook, escrever um episódio de “Doctor Who”… e por aí fora. Não tive uma carreira. Simplesmente fiz o item seguinte da lista.
Então pensei em dizer-vos tudo o que eu gostaria de ter sabido quando comecei, e algumas coisas que, olhando para trás, eu suponho que sabia. E também em dar-vos o melhor conselho que alguma vez me deram, o qual falhei completamente em seguir.
Primeiro de tudo: quando começas uma carreira nas artes não tens nenhuma ideia do que é que estás a fazer.
Isto é óptimo. As pessoas que sabem o que estão a fazer conhecem as regras, e sabem o que é possível e impossível. Tu não. E nem deves. As regras do que é possível e impossível nas artes foram feitas por pessoas que não testaram os limites do possível, não indo além deles. E tu podes fazê-lo.
Se não sabes que é impossível, é mais fácil de o fazer. E porque nunca ninguém o fez antes, nunca inventaram regras para impedir alguém de o fazer outra vez, por enquanto.
Segundo, se tens uma ideia daquilo que queres fazer, daquilo que foste aqui colocado para realizar, então simplesmente vai e fá-lo.
E isto é muito mais difícil do que soa e, por vezes, no final, muito mais fácil do que possas imaginar. Porque normalmente há coisas que tens de fazer antes que possas chegar ao lugar onde queres estar. Eu queria escrever comics e romances e histórias e filmes, então tornei-me um jornalista, porque aos jornalistas é permitido fazer perguntas, e simplesmente ir e descobrir como é que funciona o mundo, e, além disso, para fazer essas coisas eu precisava de escrever e escrever bem, e estava a ser pago para aprender como escrever de forma objectiva, clara, por vezes sob condições adversas, e pontual.
Por vezes a maneira de fazer o que esperas fazer estará bem definida, e por vezes será quase impossível decidir se estás ou não a fazer o correcto, porque terás de equilibrar os teus objectivos e esperanças com a necessidade de te alimentares, de pagares as contas, de encontrar trabalho, de te acomodares com o que conseguires.
Algo que funcionou comigo foi imaginar que o ponto onde eu queria estar – um autor, primariamente de ficção, fazendo bons livros, fazendo boas comics, e sustentando-me com os meus trabalhos – era uma montanha. Uma montanha distante. O meu objectivo.
E eu sabia que desde que continuasse a caminhar na direcção da montanha, eu ficaria bem. E quando realmente não tinha certeza do que fazer, podia parar e pensar se aquilo me estava a levar na direcção da montanha, ou a afastar-me dela. Disse não a trabalhos editoriais em revistas, trabalhos adequados que me teriam dado dinheiro adequado, porque eu sabia que, ainda que atractivos, para mim eles teriam sido um afastar da montanha. E se essas ofertas de emprego tivessem surgido mais cedo eu poderia tê-las aceitado, porque teriam estado mais perto da montanha do que eu estava naquela altura.
Aprendi a escrever escrevendo. Eu tendi a fazer qualquer coisa desde que tivesse a sensação de aventura, e a parar quando a sentisse como trabalho, o que significa que a vida não teve a sensação de trabalho.
Terceiro, quando começas, tens de lidar com os problemas do falhanço. Precisas de ter pele dura, de aprender que nem todos os projectos irão sobreviver. Uma vida freelancer, uma vida nas artes, é, por vezes, como colocar mensagens em garrafas, numa ilha deserta, esperando que alguém encontre uma das tuas garrafas, a abra e a leia, e coloque na garrafa algo que retorne para ti: apreciação, ou uma comissão, ou dinheiro, ou amor. E tens de aceitar que podes despender uma centena de coisas para cada garrafa que retorna.
Os problemas do falhanço são problemas de desencorajamento, de falta de esperança, de fome. Queres que tudo aconteça e queres que aconteça agora, e as coisas correm mal. O meu primeiro livro – um trabalho de jornalismo que fiz por dinheiro e que já me tinha comprado uma máquina de escrever eléctrica em adiantado – deveria ter sido um bestseller. Deveria ter-me dado uma data de dinheiro. Se a editora não tivesse involuntariamente entrado em liquidação entre o esgotamento da primeira edição e o lançamento da segunda edição, e antes de quaisquer direitos de autor pudessem ser pagos, tê-lo-ia feito.
E encolhi os ombros, e ainda tinha a minha máquina de escrever eléctrica e dinheiro suficiente para pagar a renda por uns meses, e decidi que no futuro faria o meu melhor para não escrever livros apenas pelo dinheiro. Se não tiveres o dinheiro, então não tens nada. Se eu fizesse um trabalho de que me orgulhasse, e não tivesse o dinheiro, pelo menos teria o trabalho.
Uma vez ou outra esqueço-me dessa regra e, sempre que o faço, o universo pontapeia-me e relembra-ma. Não sei se isso é um problema para mais alguém além de mim, mas é verdade que nada do que fiz tendo como único propósito o dinheiro valeu a pena, excepto como experiência amarga. Usualmente também acabava a não ter o dinheiro. As coisas que fiz porque estava animado, e porque as queria ver a existir na realidade, nunca me deixaram mal, e nunca me arrependi do tempo que dediquei a cada uma delas.
Os problemas do falhanço são difíceis.
Os problemas do sucesso podem ser ainda mais difíceis, porque ninguém te avisa sobre eles. (…)”
Não me esfolem. O post já vai longo e até aqui se recorre aos cliffhangers, ahah. A segunda parte desta tradução recomeçará com os problemas do sucesso, e avançará com o discurso.
Até lá!
Discurso e transcrição originais disponíveis aqui: http://www.uarts.edu/neil-gaiman-keynote-address-2012
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