Por Elyon Somniare
“Ai, pânico… Não sei mais como continuar a minha história!”
Familiar? Se não o é, eu contextualizo: uma grande maioria de escritores começa por ter uma ideia linda, brilhante, fenomenal para uma história. Começa a escrever, empolgado da vida, e tudo são rosas e caramelo. Por vezes mantem-se assim por largos capítulos, outras é uma sensação que só dura durante os primeiros. E depois? Depois chega a escuridão de Hades e a história ali fica, congelada, enquanto o autor desespera porque não tem “inspiração” sobre como continuar a maldita.
Pois bem, tal acontece porque a história foi iniciada sem ter uma estrutura. Na maioria dos casos, pelo menos: como em tudo, generalizações são banidas daqui (Xôôô!). Mas enquanto para alguns ter uma estrutura em mente é tanto lhes faz como tanto lhes fez, para muitos é essencial para saber como conduzir a história até o final. E convenhamos, quer se planeie quer não, todas as histórias acabam por ter uma estrutura.
“Mas o que é uma estrutura?” perguntam vossemecês, e perguntam muito bem. Expondo de uma forma simples, uma estrutura é a ordem pela qual um autor coloca os seus eventos. Os eventos em si serão o enredo. First tip: tenham esta distinção em mente quando estiverem a estruturar o vosso enredo.
“Mas se eu estruturar vai ficar igual a todas as outras histórias e eu não quero, eu quero algo original!”
Esta tem sido uma justificação muito apresentada por quem não deseja estruturar a sua história. Infelizmente é uma justificação que demonstra preconceito para com a pobre da estrutura, coitadita, que fica com os seus sentimentos magoados sem razão de ser. Por quê? Porque a estrutura é um esqueleto. Eu tenho um esqueleto. Vocês têm um esqueleto. Todos à vossa volta têm um esqueleto. Até o Jack Skelleton tem um esqueleto. Significa isso que somos todos iguais? Não. Com a estrutura e a história funciona da mesma forma. E mais: a estrutura está além do plágio! Que quero dizer com isto? Quero dizer que enquanto “OMG que personagem/ evento/ world building/ fala/ descrição magnífica, preciso mesmo de a usar na minha história” é plágio e não se deve fazer, “OMG que estrutura magnífica, preciso mesmo de a usar na minha história” não é plágio e pode-se perfeitamente fazer. Não acreditam? Pois eis algumas histórias que partilham a mesma estrutura: Harry Potter, Senhor dos Anéis, Percy Jackson e Star Wars. Não são as mesmas histórias. Não são plágio umas das outras.
Tudo isto esclarecido, avancemos para a próxima questão pertinente, mais uma vez colocada por vocês, jovens, que eu confio na vossa perspicácia: “Como é que eu estruturo a minha história?” E uma excelente questão que esta é. Não existe uma só estrutura to rule them all ou método de estruturação, contudo, ao longo dos anos vários críticos e estudiosos foram investigando e acumulando alguns “esquemas” de estruturação à história da Literatura. Isto, naturalmente, é um trabalho que ainda está a ser feito e, como qualquer coisa académica, não há consenso (oh, alegria!). O que acaba por ser bom: permite ao autor que aplique a estrutura que melhor lhe apraz.
A estrutura da qual iremos falar hoje, contudo, é uma das mais amadas pelo público, quer o público saiba quer não. É a estrutura de Harry Potter, Senhor dos Anéis, Percy Jackson e Star Wars, entre outros. É “A Jornada do Herói”, uma teoria desenvolvida por Joseph Campbell e publicada em 1949 sob o título “O Herói das Mil e Uma Faces”. No seu ensaio, Campbell utiliza como exemplos contos mitológicos de uma grande variedade de culturas, demonstrando a ancestralidade da estrutura e quão instintiva esta é ao ser humano. Eu, no entanto, vou procurar utilizar exemplos mais recentes, e aproveitar para sumariar e muito a teoria aqui do Campbell, porque ao senhor deu-lhe para escrever umas 400-páginas-mata-focas-bebés e isso seria extrapolar em muito o limite de bom senso de um blog.
Vamos ao trabalho? Vamos ao trabalho!
A Jornada do Herói divide-se em três partes, cada uma com as suas próprias divisões: Partida, Iniciação e Regresso. As subdivisões que aqui se encontram não estão necessariamente em todas as histórias que utilizam esta estrutura, nem sempre com a ordem aqui estipulada, mas pelo menos uma delas somos sempre capazes de distinguir. Olhemos mais a fundo.
Na Partida podemos encontrar cinco subdivisões principais:
1) O Chamamento da Aventura
O destino tira o herói do mundo que ele conhece, da sua bolha de conforto, e leva-o para o desconhecido. Este “destino” pode ser um ataque do inimigo que lhe destrói a casa e assassina os tios, como acontece com Luke Skywalker em “Star Wars”, ou pode ser um feiticeiro de longas barbas que nos enfia um bando de anões pela casa adentro, como acontece com Bilbo Baggins em “O Hobbit”. Ou seja, pessoa, acontecimento ou acidente, tudo se encaixa.
2) A Recusa do Chamamento
Como já devem ter adivinhado pelo nome, o herói recusa partir numa aventura. Esta recusa pode ser permanente ou reversível, sendo esta última a mais comum. Lembram-se de como o Bilbo estava reticente em deixar o Shire?
3) O Ultrapassar do Primeiro Limiar/ Desafio
O herói ainda não começou a aventura propriamente dita, quando já tem de dar a volta aos guardas que verificam o caminho para o desconhecido. Uma boa analogia é a Esfinge, aquela que apenas permite a entrada na cidade aos viajantes que consigam responder acertadamente ao seu enigma. Mais um bom exemplo? Um bom exemplo seria quando Frodo Baggins deixa o Shire, tendo de escapar aos Nazgûl. Na sua primeira aparição, eles são os “guardas” que o querem impedir de partir na sua aventura.
4) O Estômago da Baleia
O estômago do quê? Vamos falar sobre Jonas? Quase. Esta fase é uma metáfora para o “desaparecimento” do herói do mundo que ele conhecia. O desconhecido, de certa forma, engole o herói. Harry Potter, por exemplo, “desaparece” do mundo dos Muggles para ser absorvido pelo mundo dos feiticeiros. Bilbo e Frodo “desaparecem” no Shire para serem engolidos pelas aventuras no resto da Terra Média. Percy Jackson “desaparece” do mundo normal para ser engolido pelo Acampamento Meio-Sangue. Já apanharam a ideia, suponho.
5) Ajuda Supernatural
Sendo a mais flexível, podemos encontrá-la entre várias das restantes subdivisões, em simultâneo que qualquer uma delas, e mais do que uma vez – ou nunca a encontrar. Explicando com simplicidade, o herói é auxiliado por outrem, usualmente um guia, e usualmente com algum tipo de poder. Há já nomes a pipocarem nessas cabeças jovens? Exactamente. Dumbledore em “Harry Potter”, Gandalf em “Senhor dos Anéis”, Brom em “Eragon”, etc, etc.
Na Iniciação, aquele momento comummente visto como o “meio” da aventura pelo leitor ou espectador, temos seis subdivisões a merecer uma palavrinha:
1) A Estrada dos Desafios
É uma altura em que o herói deve pôr de lado o seu orgulho, beleza, virtude e/ou vida, e curvar-se ou submeter-se ao absolutamente intolerável. Assim que o fizer, descobre que ele e o inimigo não são de espécies diferentes, mas uma só carne. Psique e as suas quatro tarefas para recuperar o perdão e confiança de Eros é um exemplo desta subdivisão. Em “Harry Potter e a Pedra Filosofal” temos também esta “Estrada” em evidência quando, no final, Harry percorre as salas e desafios necessários para chegar à Pedra Filosofal, e encontra Voldemort estampado na nuca do Professor Quirrel.
2) O Encontro com a Deusa
Rebuçados para quem pensou em mais uma metáfora! Elas são recorrentes pelas teorias literárias. Isto espelha o papel que a mulher tem na mitologia: ela representa a totalidade do que pode ser sabido, sendo que o herói é aquele que aparece para saber. Este encontro pode ser positivo ou negativo, conforme as implicações que terá para o herói, e pode ser levado a cabo por mais do que uma personagem, não tendo de ser obrigatoriamente uma mulher toda-poderosa. Um bom exemplo desta subdivisão é a personagem Angela em “Eragon”, ou Galadriel em “Senhor dos Anéis”.
3) A Mulher como a Tentação
Ah, uma tentação que coloca as peças em movimento! Mais uma vez representada por uma mulher, embora não seja obrigatório, e um pouco autoexplicativo. Fugindo da ficção especulativa, que tem fornecido todos os exemplos até ao momento, as melhores “materializações” desta subdivisão podem ser encontradas em Lady Macbeth, da peça shakesperiana “MacBeth”, e a própria Eva, do Génesis.
4) Reconciliação com o Pai
Primeiro é preciso compreender que este “pai” não é literal, mas sim uma representação dos medos do herói, ou uma figura que representa aquilo em que o herói se quer tornar. Deste modo, caso estejamos perante o primeiro caso, o herói consegue abandonar o duplo monstro auto-gerado, vencer os seus monstros psicológicos, por assim dizer, enquanto no segundo caso o herói, de certa forma, consegue ultrapassar ou igualar-se ao seu mentor.
5) Apoteose
Ou divinização. O herói apercebe-se das suas capacidades, e consegue alcançar o seu potencial máximo.
6) A Derradeira Graça
O herói consegue aquilo que desejava, para seu bem ou para seu mal. Harry tem uma bela de um pedra filosofal no seu bolso no fim d’A Pedra Filosofal, Percy Jackson limpou o seu nome e recuperou os raios n’O Ladrão de Raios, Frodo destrói o Anel, Luke Skywalker vence o Império, o Rei Minas consegue o toque de ouro…
Tudo se encaminha para o final. “Mas eu preciso de ter tudo isso na minha história? É que é tanta coisa, e eu realmente não preciso da subdivisão X para isto ou para aquilo.” A resposta é: não. Cada autor utiliza as subdivisões de que necessita. Em literatura, até com o esqueleto se pode brincar.
“Ah, óptimo, então vou agora começar a escre…”
Calma, calma, que ainda falta o Regresso! Não podemos deixar o herói abandonado por aí, depois de ele ter passado por todos aqueles problemas para nos entreter, não é? Não seria educado, então, apenas natural que o herói leva o seu prémio (conhecimento, valores, pessoas, liberdade, etc) de volta ao mundo comum. Também aqui temos seis subdivisões principais, sendo mais evidente a sua não-obrigatoriedade, pois enquanto umas podem ser usadas em simultâneo, outras dariam uma salgalhada de todo o tamanho, caso se tentasse misturar – se é que não se contrariam de todo.
1) Recusa em Regressar
Meio óbvio o que o herói faz aqui. Esta recusa pode ser temporal ou definitiva. Ou pode ser algo como “João Sem Medo”, em que o herói se duplica, e enquanto um João vai viver a sua vida comum, o outro João continua as aventuras, sendo que trocam de lugar de X em X anos.
2) O Voo Mágico
Apesar de eu ter imediatamente uma imagem do Alladin no Tapete Voador cada vez que leio isto, o que verdadeiramente isto quer dizer é: o regresso é feito com o auxílio de favores sobrenaturais. Até pode ser um tapete voador, mas o exemplo mais conhecido – de tanta piada que já gerou – são as Águias que levam Frodo e Sam do Vesúvio, perdão, de Mordor para Rivendell, em “O Senhor dos Anéis”.
Não, não tem de ser necessariamente feito através de uma entidade voadora.
3) O Resgate
O herói é resgatado, ou obrigado a regressar. Por exemplo, em “Harry Potter e os Talismãs da Morte”, quando Harry “morre” por uns segundos/minutos, conversa com o Dumbledore na Plataforma 9 ¾, e depois regressa ao mundo dos vivos.
4) O Ultrapassar do Limiar/Desafio do Regresso
O herói não é a mesma pessoa que era aquando a partida. A sua aventura alterou a sua maneira de ser, de pensar e de encarar o mundo. Agora, o herói tem de sobreviver ao impacto do mundo. Mais uma vez, a saga “Harry Potter” apresenta excelentes exemplos no final de cada um dos livros.
5) Mestre dos Dois Mundos
O herói adquire a capacidade de viajar entre ambos os mundos. Percy Jackson, por exemplo, pertence tanto ao “nosso” mundo comum, como pertence ao mundo mitológico representado no Acampamento Meio-Sangue.
6) Liberdade para Viver
No final da saga de “Harry Potter”, o mundo mágico respira de alívio pela liberdade que adquiriu após o desaparecimento definitivo de Voldemort. Em “Jogos Vorazes”, mais nenhuma criança terá de matar outra para sobreviver a um jogo. Em “A Bela Adormecida” todas as pessoas que se encontram adormecidas no castelo acordam junto com o quebrar do encantamento. Em todos estes exemplos, é permitido a uma generalidade que prossiga com as suas vidas comuns.
E isto, meus jovens, é “A Jornada do Herói” de Campbell, resumida. Como já antes disse, e como ficou evidente pelos exemplos, trata-se de uma das estruturas que mais aceitação tem, e que mais empolgamento desperta. Possa esta estrutura ajudar-vos nos vossos escritos, e impedir que fiquem sem saber como continuar o vosso épico.
Bibliografia:
COX, Ailsa (2005). Writing Short Stories – A Routledge Writer’s Guide. New York: Routledge
CAMPBELL, Joseph (1968). The Hero With a Thousand Faces. New Jersey: Bollingen Foundation
Eu estava esperando por um artigo como esse há séculos.
ResponderExcluirMuito interessante isso :))
ResponderExcluirEstava mesmo procurando esses dias uns livros do Campbell para ler, hihihi.
Adorei saber dessa estruturação... tenho sérias dificuldades em continuar histórias XP
Vou salvar nos meus favoritos agora!
Ainda bem que gostaste <3
ExcluirOh, eu gostei bastante, ainda mais o modo como, pelo mesmo esqueleto, se cria histórias tão distintas. Com certeza vou usar quando escrever uma história de fantasia.
ResponderExcluirMas será que terá outros artigos como esse, para montar estruturas que não são exatamente "épicas"? haha. De qualquer forma, eu adorei!
Ainda bem que gostaste!
ExcluirNo caso o título correto é "Herói de Mil Faces".
ResponderExcluirPost muito bom, parabéns!
Obrigada :)
ExcluirBem estou começando uma história agora e já estava louca pra ler sobre isso há algum tempo. Vou ver como estruturo minha história. O post foi ótimo, obrigada por esclarecer ^^
ResponderExcluirBeijoos!