A representação feminina nas histórias, parte 2

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Senhorita Elllie
Começando a segunda parte do nosso artigo sobre a representação feminina nas histórias, vou abordar, dessa vez, o teste de bechdel, a sexualização das mulheres nas histórias de fantasia e também o desenvolvimento de personagens em cima de visões estereotipadas de mundo. Novamente, gostaria de lembrar que a sua história está sob o seu controle e nada do que está aqui são regras, mas que também é sua, e unicamente sua, a responsabilidade pelo impacto gerado pelas suas palavras, sejam elas negativas ou positivas.
Como prometido no último post, falarei um pouco sobre o teste de Bechdel, a beleza excessiva de nossos protagonistas e sobre a polarização da personalidade das mulheres na fantasia.
Teste de Bechdel — O teste de Bechdel é atribuído à cartunista Alison Bechdel, que o apresentou em uma de suas tiras na década de oitenta. Na tira, a personagem dizia que só assistia a um filme se ele tivesse, em seu elenco, duas personagens mulheres que conversassem uma com a outra sobre qualquer coisa que não fosse um homem. Parece simples, não é? Mas a verdade é que a maior parte dos grandes sucessos do cinema não cumpre esses requisitos.
Obviamente, sendo um teste pensado para mídias visuais (inicialmente apenas filmes, logo depois séries), não se deve ser literal ao aplicar o Bechdel para obras literárias. Nos filmes, tem-se uma perspectiva ampla de todo o cenário e vários pontos de vista são abordados simultaneamente, enquanto, nos livros, às vezes tem-se um recorte restrito dos acontecimentos (como em narrações em primeira pessoa, onde tudo depende do que o protagonista vê) ou um cenário que não favorece o desenvolvimento de personagens secundários.
Não dá para exigir, por exemplo, que o teste de Bechdel seja seguido à risca numa história narrada em primeira pessoa por um homem que mora num colégio interno masculino, mas dá para problematizar a falta desses critérios em histórias onde temos um elenco mais amplo, como, por exemplo, colegiais ou fantasia, e é aí que quero chegar com toda essa ladainha.
Colegiais predominantemente apresentam uma protagonista mulher, o que é ótimo, mas falham na hora de fazê-la interagir com o entorno. Tirando o par romântico da protagonista, muitas vezes não há muitas falas com o resto dos personagens, e, quando há, elas geralmente são sobre a relação da moça do seu par romântico. Meninas, como todas as outras pessoas, possuem sonhos — uma faculdade, um bom emprego, uma vida independente — e não ver esse recorte da vida das protagonistas pode torná-las insossas aos olhos do público. Um exemplo disso é Bella Swan; em certos momentos dos livros, o nome, a menção ao nome ou a presença (implícita ou explícita) de Edward chegavam a dominar todos os diálogos. Isso não parece assustador?
Em livros de fantasia, temos uma parte ainda mais complicada do problema: não há mulheres, muitas vezes, e, quando há, elas aparecem em formas pré-definidas estereotipadas. Geralmente na forma de alguma deusa, de alguma feiticeira, de alguém que poderá dar o suporte adequado ao protagonista para conseguir seguir em sua jornada, da mulher que morre para motivá-lo ao seu fim; raramente como personagens ativas que possuem a sua própria história e capacidade para fazer a diferença no enredo. É irritante ler um livro de fantasia e perceber que, no meio de tantos homens, há apenas uma mulher com nome, e que ela não muda absolutamente nada na história, que a mulher passa o livro inteiro agindo em função dos homens que estão no seu entorno, ou, pior de tudo, que a existência da moça no livro tem a única função de mostrar uma cena chocante de estupro ou assassinato — que existe pelo único motivo de chocar.
Não dá para criar um teste de Bechdel com critérios para a literatura, sendo ela uma mídia muito diversificada, mas pensar nos critérios usados para o cinema já é o suficiente para que reflitamos a respeito. Há mulheres lendo esses livros; naturalmente, elas vão esperar que suas representações estejam no mínimo decentes. O que leva aos próximos pontos.



A Beleza Excessiva dos Protagonistas — Faça um exercício mental e lembre-se: das fics e livros que você já leu, quantos protagonistas eram gordos? Quantos, em suas descrições, poderiam ser lidos como feios? Poucos? Nenhum?
Não há ninguém feio em filmes, livros, fics, séries, sejam esses personagens femininos ou masculinos. O máximo que existe são pessoas lidas como "comuns" e quase nunca há uma pessoa gorda — em livros e fanfics principalmente. Contudo, a vida real é bem diferente da realidade mostrada nessas histórias; não é preciso ir muito longe para encontrar pessoas que se diferem do padrão lido como bonito para a mídia. Elas existem, claro, elas consomem esses livros, elas sentem falta de personagens que representem seu tipo corporal, e eles continuam não existindo.
Interessantemente, pode-se ver esse tipo de problema até de livros vindos de autores cujo corpo difere-se muito dos padrões midiáticos. Cassandra Clare, autora da série Os Instrumentos Mortais, é uma mulher gorda, e nenhum de seus protagonistas foge da definição de beleza clássica. Todos são magros. Foram precisos três livros para que aparecesse uma negra de importância. Era de se esperar que Cassandra, por estar envolvida com o fato de não se encaixar no biotipo magro, quisesse trabalhar isso em suas histórias, mas ela não fez. Por quê?
Não há nenhum estudo respondendo a essa questão: por que homens e mulheres negros e brancos, altos e baixos, magros e gordos, continuam escrevendo grupos de protagonistas com, essencialmente, as mesmas características. Mas há teorias, e uma bem aceita é o aquela que defende o fato que você sempre escreve sobre aquilo que você quer ser; se você não considera bonito, vai escrever protagonistas lindos, com personalidades perfeitas, com corpos de modelo. Não é sua culpa você querer escrever protagonistas que se encaixem no padrão dos seus sonhos, mas vale a pena se perguntar: por que esse é o padrão dos seus sonhos?
Este não é um artigo sobre mídia e a influência da propaganda; não vou me delongar nisso. Contudo, é interessante você notar que, ao escrever um personagem que é diferente do que a gente vê sempre, você vai estar mostrando para pessoas com aquela característica que aquilo também diz a respeito delas. Isso é uma injeção de autoestima. Pessoas gordas ou feias podem fazer exatamente as mesmas coisas que as pessoas ditas "bonitas", inclusive amar e ser amadas.



A Polarização das Mulheres na Fantasia divide-se em sexualização e "puerização".
Sexualização - Pense em um joguinho situado em um mundo de fantasia qualquer. Não vou citar nomes, não é necessário, você vai conseguir se lembrar de pelo menos um jogo. Pense nas armaduras dos homens. Pense nas armaduras das mulheres. Pronto. Você está diante da sexualização das mulheres na fantasia.
Um jogo não é um livro, óbvio; há claras diferenças em muitos aspectos, mas não tanto no que tange à representação das mulheres. É comum aparecer em histórias uma deusa do mal que, coincidentemente, é também muito sexy, ou uma bruxa do mal que também é, coincidentemente, muito sexy. É comum associar a sensualidade à maldade nas mulheres.
Esse é um pensamento antigo; a Igreja já se baseava nele para punir mulheres lá na época da Inquisição e ver que ainda temos sinais disso nas histórias de fantasia atuais mostra como e em que pontos houve uma evolução. Desenvolver as mulheres baseado apenas em sua sensualidade é reduzi-las à sua aparência, e isso chega a ser revoltante. Você não é má apenas por ser sensual; você não é uma maldita apenas por ser bonita.


Puerização - Se a mulher não está representada como uma femme fatale, ela é geralmente uma doce donzela pueril. Esta mulher sempre tem coisas bonitas para dizer ao protagonista, coisas sobre perdão, espírito. Ela não sente raiva, a não ser quando o protagonista está envolvido; ela não guarda mágoas, fala sempre manso, é suave. De acordo com os padrões da época da Inquisição, ela é a esposa perfeita.


Assim sendo, temos um padrão onde, na presença de sensualidade, a mulher tem um componente de perigo, enquanto, na ausência de sensualidade, ganha um ar quase angelical. Os homens, nas histórias, não são definidos por esse tipo de comportamento; eles fazem sexo, seduzem mulheres, matam, torturam e não são tachados pela irritante linha do bem e do mal. Por que os homens não têm sua personalidade definida pela sua vida sexual? Por que as mulheres têm?


Isso pode parecer taxativo: tantas regras para escrever uma personagem feminina, soa até como se eu estivesse podando a criatividade de todos os possíveis escritores. Depois de todos esses clichês, pode-se perguntar: como escrever uma personagem feminina?
Simples. Escreve-a como se escreve uma pessoa normal, porque mulheres são pessoas normais. Dê à sua personagem feminina uma família, amigos, sonhos, perspectivas, opiniões, um passado, defeitos, qualidades, erros. Não defina o que ela é apenas porque ela é bonita,ou sexy. Apesar do senso comum, ela não precisa ser salva sempre, ela pode se virar sozinha, e ela pode também salvar alguém; ela pode ser forte, ela pode ser fraca, ela pode ser chata ou legal, mas isso tem que ser parte do que ela é. Desenvolva-a como você desenvolve seus personagens masculinos.
Não pode ser assim tão difícil: não somos lá tão diferentes, somos?

2 comentários:

  1. Juro que vou criar uma conta3 de março de 2016 às 18:57:00 BRT

    Adorei a aula, mas faltou citar o fato de que quando personagens fora do padrão aparecem eles SEMPRE emagrecerão ou algo do tipo.
    Eu sendo gorde agenere me arranho tode quando vou ler algo que só tem personagens estereotipados.
    O gordo é engraçado
    A trans tá se odiando
    E feie quer uma cirurgia
    A mulher adora ser cantada na rua durante a noite na rua sozinha
    SÓ PAREM

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