Quem Tem Ranço da Jornada do Herói? - Parte 1/3

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

 Por Asthera Maxwell
Perfil: https://fanfiction.com.br/u/243608/


            Olar, pessoas, tia Asth aqui outra vez!
            Primeiramente, gostaria de comentar duas coisas sobre meu post anterior. Quando exemplifiquei sobre Haymitch e Gale no tipo em que as falhas falam mais alto que as qualidades, foi pela impressão que tive deles. Gale se deixou levar por elas e caiu em sua curva de desenvolvimento de personagem, dando-lhe aquele fim que todo mundo já sabe. Já Haymitch, sobe.
            Outra coisa, quando falei no final “evitar o menor pior”, era justamente o oposto, era escolher o menos pior. Perdoem, minha alma já está velha e cometi esses errinhos maravilhosos! e.e

            MAS, OK!

            Vamos falar hoje de algo que a maioria detesta, mas todo mundo usa inconscientemente. JORNADA DO HERÓI!
            E como eu já pesquisava sobre o assunto antes, passei muitos anos quietinha e estou a fim de uma polêmica, digo: uma hora ou outra, você precisará da Jornada do Herói, mesmo que a deteste. Por quê?
            Primeiro, porque Jornada do herói é uma forma literária de retratar nossa vida e segundo, porque para quebrar as regras, você precisa conhecê-las.
            Primeiro explicarei o que ela é, depois chegarei ao assunto que interessa a vocês, O RANÇO QUE TODO MUNDO TEM DA POBREZINHA, RS!
            Vem comigo!


1 – JORNADA DO HERÓI: O QUE É, DE ONDE SURGIU?

            Primeiro, gostaria de pedir a licença de vocês e usar a sigla, em vez do nome todo, porque fica mais prático.

            A Jornada do Herói, ou monomito, é um termo criado em 1949 pelo antropólogo, escritor e professor Joseph Campbell. Ele analisou narrativas antigas de deuses, fábulas, contos e identificou um padrão entre elas, desde Prometeu a Jesus. Mas você sabia que o padrão da JDH que circula pela internet não é o original? O pessoal propagou um diagrama pela internet afora atribuindo-o ao Campbell, mas o original tem 17 ETAPAS. O que se popularizou tem 12, que é a do Christopher Vogler.

            Segue abaixo algumas imagens explicativas dos dois modelos. No próximo post, explanarei cada um de forma mais clara, se quiserem, para que este aqui não fique longo, rs.

Monomito de Vogler

Monomito de Campbell



2 – PROBLEMATIZANDO A JDH

            Detesto usar esse termo, na verdade. Não seriam problematizações, mas reflexões que trago a fim de que consigamos trabalhar a JDH da melhor forma possível, então espero que não levem nada para o pessoal, já que o assunto pode ser espinhoso demais para algumas pessoas.


2.1 – Patriarcal

            Acredito que essa crítica está bastante em voga no contexto atual, não vi comentários desse tipo no Nyah quando pesquisei, mas na internet em geral, é um dos pontos que a galera levanta. Na JDH original, as mulheres são citadas diretamente em apenas duas etapas: The Meeting With the Goddess e o Woman as Temptress.

            Ambos não estão listados na JDH proposta por Vogler, mas ele, diferente do Campbell, é claramente favorável ao papel da mulher como heroína, afinal como roteirista, Vogler trabalha com o que o público quer ver.

            No Meeting With the Goddess, o personagem experimenta o amor, seja o amor romântico, ou na forma de uma metáfora maternal quase divina. Aqui, a mulher não é sua igual, mas uma figura a ser honrada e protegida (Lex, 2012), quase adorada, podemos dizer. No Woman as Temptress, a mulher é vista como uma tentação, algo que impede o herói em seu destino. Ainda segundo Lex, Campbell “optou por enquadrar a metáfora como mulher, porque muitas histórias clássicas usavam o tropo da luxúria masculina, pouco restritiva, para tentar o herói”. Não preciso dizer mais nada. Nesse sentido, creio que a primeira etapa possa ser exemplificada por Beatrice na Divina Comédia e Virgem Maria n’A Balada do Cavalo Branco, e a segunda por Helena na Ilíada.

            Mas convenhamos, a literatura (ocidental, pelo menos) da época tinha predominância masculina, não foi ele quem determinou que a JDH seria assim, Campbell simplesmente analisou alguns mitos (que coincidentemente foram retratados ou estrelados por homens), formulou o monomito a partir disso e that's it.

            Um dos argumentos que usam para sustentar esse ponto da JDH, é que Campbell usou mitos, lendas e narrativas ocidentais, desprezando as orientais, em que as mulheres aparecem mais. Mas quer exemplos de narrativas antigaças do ocidente onde a mulher é protagonista e segue a JDH? Primeiro, consideremos que a civilização ocidental foi erguida em três pilares e um deles é a moral judaico-cristã, cujo livro sempre desperta um monte de controvérsias.

            Pois bem, nesse livro há duas delas.

            No Velho Testamento, ainda por cima.

            No Livro dos Juízes, como se já não fosse suficiente.

            São os casos de Ester e Débora. Independente se você acredita ou não, independente se a história foi escrita apenas para explicar o motivo de uma festividade (Festa de Purim, no caso de Ester), aí estão narrativas em que mulheres aparecem com papéis muito relevantes. Mulheres importantes também apareceram em outros livros.

            Isso sem contar a importância do feminino representado por Atena e sua cidade, quando escolheram-na em vez de Poseidon; além da representação da mulher como provedora da fertilidade, da proteção da natureza, da caça, da maternidade e do destino da humanidade nas mitologias grega, romana e celta. E o surgimento de Roma? Foi uma Loba que alimentou os gêmeos, se você ligar esse mito ao livro “Mulheres que correm com Lobos”, o feminino também tem um papel forte ali. Só porque Campbell provavelmente levou em conta na formulação do monomito apenas as participações das deusas envolvidas na Ilíada, não quer dizer que não existia literatura ou tradição oral relacionadas a elas na época.

            Quer outros exemplos mais atuais? Toma: Anna (Frozen), Moana (Moana: um mar de aventuras) e Katniss (Jogos Vorazes). Mesmo que no caso da Katniss ficasse mais escrachado que ela não segue totalmente a jornada do Herói, afinal ela não teve aquela “recusa ao chamado”.

            Ué, a JDH sem ser seguida fidedignamente continua sendo JDH? Continua sim, afinal não é uma fórmula engessada, é apenas um esqueleto. Na própria Epopeia de Gilgamesh, ele não é o estereótipo de herói bonzinho que a JDH que conhecemos e reproduzimos hoje propaga. A história faz sentido, mesmo com as etapas invertidas? Então, tudo bem.


2.2 – Não segue as próprias etapas

            Como comentei anteriormente, a JDH não é engessada, então os personagens podem pular ou inverter etapas. Alguns já até “começam prontos”, ou seja, já possuem as armas físicas e psicológicas das quais precisam dispor para enfrentar a jornada, antes daquela “fatia de vida” que a história está retratando, sendo que a Jornada, em essência, é retratar justamente esse processo de desenvolvimento das armas. Exemplos? Katniss de novo, Oberyn Martell (da série, porque não li o livro ainda), Ansel e Sofia Delavi (A Viagem da Sacerdotisa).


2.3 – A galera interpreta errado, virando um checklist

            Já fiz alguns cursos e o pessoal comenta bastante sobre essa questão de seguirem muito à risca a JDH. A influência do imaginário do Tolkien ou do Martin não dá muito espaço para que o pessoal inove. Acredito que esse seja o maior desafio da JDH, inclusive. Quer um exemplo?

            Levanta a mão quem tem um personagem mentor na história, independente se é homem ou mulher!

            Agora de vocês que levantaram, levanta a mão quem tem um mentor velho, sábio ou figura que substitui pai/mãe ausente do personagem principal!

            Viu? Isso remonta ao que Tom Freitas diz sobre a JDH: as pessoas confundem ARQUÉTIPOS com ESTEREÓTIPOS.

            Espera, buguei, tia Asth!

            Exemplificando:

            — Arquétipo: Mentor | Estereótipo: senil, barbudo, iluminado, na vibe do Dumbledore ou do Gandalf.

            — Arquétipo: Herói | Estereótipo: aldeão, camponês, jovem, aventureiro.

            — Arquétipo: Heroína | Estereótipo antigo: donzela, inocente, submissa, apenas serve como recurso emocional para o herói encontrar o motivo de seguir adiante, ou como recompensa por sua jornada; Estereótipo atual: masculinizada, desbocada, fria, aparentemente já desenvolvida antes mesmo da história começar.


            2.4 – É clichê

            Esse argumento é o que a gente mais vê por aí, não adianta dizer que não, pois no grupo do Nyah! mesmo as respostas que vi, seguiam nessa linha. A verdade é que tudo que é conhecido se torna mais usado, afinal, não é só x ou y que tem o direito de seguir uma forma, z também tem. Assim como você tem a escolha de procurar por outra forma de contar sua história.

            Os arquétipos da JDH tiveram influência de Jung, a psicanálise trabalha com pessoas, então como fugir disso? Ela diz que essencialmente a JDH se baseia na nossa vida. Nos nossos desafios, conquistas e transformações pelo qual passamos. Se nós fizermos o que uma galera diz por aí (de só escrevermos sobre aquilo que conhecemos, o que eu considero uma bobagem, mas isso fica para outro post <3) automaticamente escreveremos sobre a JDH, afinal é nossa vida!

            Agora, se você chega nos posts do Nyah quando perguntam: “o que você mais vê numa história?”, responde algo parecido com: “personagens bem construídos”, mas rejeita a Jornada do Herói que essencialmente retrata a transformação do personagem durante sua jornada rumo ao objetivo, TALVEZ esteja se contradizendo. (Isso se o personagem já não for badass antes da história começar, mas aí você sairia do espeto e cairia na brasa, afinal, se ele já está desenvolvido, no que terá a contribuir ao enredo sem ficar maçante ou chato ao seu leitor? rs)

            Histórias sem pontos de virada ou momentos marcantes não chamam a atenção. Se você quer vender, precisará fazer uso da JDH de alguma forma. Sad, but true.

            Há histórias em que o personagem passa o texto todo sem uma transformação na sua linha de desenvolvimento? Não duvido que haja, mas como não conheço, procurei pelo assunto. Daniel Galera parece ter feito isso no seu primeiro livro, mas como não li para saber, não tenho certeza.



            3 – CONCLUSÃO

            Para encerrar a primeira parte desse post sobre JDH, quer um exemplo de personagem que passou pela JDH e do qual praticamente uma geração inteira se lembra? Toma: quem aí não morria de raiva do Shinji (Neon Genesis Evangelion)?

            Evangelion passou por um reboot e os filmes mudaram bastante a personalidade dele, mas se você assistiu ao anime, verá o quanto ele demorou para cumprir sua JDH. Literalmente, quando avançava um passo, retrocedia dois. Enrolou um século na recusa ao chamado e quando você acha que ele desencanou, Shinji empaca mais uns milênios n'A barriga da baleia, na provação traumática e na ressurreição. O que você mais vê em fãs de Evangelion é um hate muito grande no Shinji por essa enrolação, mas o anime seguiu direitinho a JDH e ainda assim é um clássico dos anos de 1990. Se você deseja trabalhar bem seus personagens, assista Evangelion, SEMPRE tem algo a mais para descobrir sobre eles, só procurar no Youtube sobre as interpretações e mensagens do anime que você terá uma baita aula <3

            No próximo post vou me aprofundar na JDH do Vogler. A gente encheu o saco do Campbell aqui, mas se não fosse ele, Vogler não teria aperfeiçoado o monomito. Seu livro ajuda bastante a desmistificar os estereótipos que permeiam os arquétipos. Além disso, tentarei compilar algumas “alternativas” à JDH. O post ficará extenso, então pode ser que eu divida em dois.

            Se quiserem, posso também fazer um post de apoio com “sub-arquétipos” (por falta de palavra melhor) depois, para ajudá-los com seus personagens, acredito que ajudaria bastante. Afinal, não importa se for clichê, desde que seja bem desenvolvido, seu leitor agradece! Só manifestarem interesse aí nos comentários, que eu já separo meu material aqui <3

            Até lá!



Referências Bibliográficas:








VOGLER, Christopher. The Writer's Journey: Mythic Structure For Writers. Studio City, EUA: Michael Wiese Productions, 1998.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rocco, 2014.

3 comentários:

  1. Adorei! É necessário refletir sobre a jornada do herói, principalmente sobre a banalização dela. Achei maravilhosa essa diferenciação de arquétipo e estereótipo, acho que rola um post no blog só sobre isso. Parabéns!

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  2. Muito bem explicado e inspirador. Evitou que eu cometesse alguns erros!

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