A Representação feminina nas histórias, parte 1

segunda-feira, 30 de março de 2015

Por: Senhorita Ellie

A literatura é uma arte extensa e cheia de possibilidades. Com ela nós podemos criar mundos, situações, pessoas, raças, culturas... Essa liberdade é maravilhosa e é ela que torna o ato de escrever tão fascinante, porque o ato de criar é fascinante. Mas não é possível criar nada se não tivermos algo anterior — um conceito, uma ideia — em que nos basearmos. Quem criou o guarda-chuva, por exemplo, pensou em algo que pudesse proteger-lhe da chuva; quem inventou o fogão, em algo que pudesse criar fogo de maneira fácil e prática. Em ambos os casos os criadores tinham ideias anteriores nas quais se basear — a da chuva, a do fogo — e suas invenções foram apenas um meio de chegar até elas.
A analogia pode ser estranha, mas descreve de maneira concisa o nosso processo de escrita: nós podemos criar mundos e pessoas, mas sempre teremos a nossa própria realidade como base. Uma história de fantasia medieval tem como base a nossa própria Idade Média; elfos, vampiros e outras raças “mágicas” têm como base a nossa própria imagem humana com alterações que sirvam ao propósito do autor. Assim, a nossa realidade está sempre sendo representada em nossas histórias, por mais fantasiosas que sejam, porque não podemos nos desvincular dela; é ela a base para nossa criação.
Aonde eu quero chegar? Se temos nossa realidade como base, nós a representamos de alguma forma nos universos que criamos. Representamos cidades baseadas nas cidades que conhecemos, culturas baseadas naquelas que vivemos e pessoas baseadas nas que conhecemos. Contudo, com influências do meio ou por causa de nossos próprios preconceitos, essa representação pode vir distorcida, e é aí que eu quero chegar com esse artigo: o modo como representamos homens e mulheres em nossas histórias e, consequentemente, a influência que isso pode ter em futuras representações. Vou me focar, nesse artigo de duas partes, na representação feminina, por ser essa aquela que apresenta a maior quantidade de distorções e estereótipos. Por ser um tema um pouco extenso, vou me focar nos principais vícios, dando motivos para você não usá-los ou para pensar um pouco antes de colocá-los em suas histórias.
Tenha consciência de que a história é sua e o jeito como você a escreve está sob seu controle — apenas seu. Mas também tenha consciência de que, quando você reproduz um preconceito, você está contribuindo para que ele se perpetue. É sua escolha considerar o lado político da nossa escrita ou apenas o lado que visa apenas o entretenimento, mas, como em toda escolha, é bom conhecer os dois lados. Dito isso, ao artigo.



As falhas da representação feminina na literatura
A representação feminina nas histórias, como um todo, estrutura-se sobre clichês, vícios de enredo que já não apresentam grande originalidade, mas que continuam vendendo e, por isso, continuam sendo usados. O motivo pelo qual tais clichês continuam vendendo é razão para outro artigo, mas o que interessa aqui é o fato de que a maior parte desses clichês envolve algum preconceito e/ou estereótipo de gênero, e por causa de sua repetição excessiva, nós nos tornamos muito habituados a eles. Isso pode parecer inofensivo, afinal, são apenas livros, não é mesmo? Contudo, tudo o que consumimos e escutamos têm influência no modo como pensamos e vemos o mundo, de forma que acabamos reproduzindo esses preconceitos no dia-a-dia sem nem perceber.
Um grande exemplo de como as coisas que escutamos são determinantes no modo como vemos o mundo é o clássico preconceito (e um grande estereótipo de gênero) da loira burra. Não há nenhum estudo que comprove discrepâncias intelectuais entre loiras e morenas (e, interessantemente, homens loiros não ganham tal conotação negativa, embora a cor de cabelo seja a mesma), mas, de tanto ouvir piadas sobre o assunto, muita gente realmente acredita que as mulheres loiras realmente sejam mais burras (ou que, abordando um lado mais absurdo, pintar o cabelo de loiro seja capaz de minar a inteligência de alguém). O contra-argumento mais comum para as reclamações sobre esse estereótipo é oras, mas é só uma piada!, mas ninguém pensa nas mulheres loiras que são obrigadas a escutar piadas e serem ridicularizadas por isso.
Pronto. Eu dei um exemplo de como uma piada pode perpetuar preconceitos e estereótipos, mas onde a literatura se encaixa nisso? Em mais campos do que você imagina. A seguir, vou abordar de forma mais ou menos superficial os principais vícios da representação de personagens (sobretudo as mulheres) nas histórias. Por que as mulheres? Além do motivo já citado — a representação das mulheres em cima de vícios de enredo e clichês —, porque a nossa representação é minúscula comparada ao que ela poderia ser, principalmente em gêneros de “predominância masculina”, como a fantasia, por exemplo. Em gêneros onde praticamente não somos representadas, então é natural que lutemos por uma representação mais justa de nossas mulheres.
E antes que qualquer pessoa pense que é mentira a parte que diz sobre a nossa representação quase inexistente, peço que você tente se lembrar, em detalhes, o número de mulheres presentes em O Hobbit, por exemplo, um dos mais conhecidos livros de fantasia do século passado — e uma fonte de inspiração para muitas histórias.
Não há nenhuma.
Agora, aos clichês:
Donzela em perigo – Esse é, provavelmente, o estereótipo mais clássico. Não é necessário pensar muito para se lembrar de exemplos dele em nossa cultura. A maior parte dos contos de fada, por exemplo, é totalmente estruturada em cima desse clichê: a mulher é compassiva, dócil e incapaz de se defender, sendo assim necessário que um homem apareça para salvá-la do perigo no final. Ou a mulher é aparentemente forte e independente, mas se torna igualmente frágil nos momentos de perigo, sendo novamente necessário que um homem apareça para salvá-la no fim.
Esse chavão, apesar de aparecer em diferentes graus em diversos gêneros da literatura, encontra seu clímax em histórias de fantasia, sobretudo aquelas em que temos um protagonista homem (ou seja, a grande e esmagadora maioria). Isso acontece porque esse é um clichê que serve perfeitamente como um gás para qualquer enredo, mesmo já sendo perfeitamente manjado. O autor não sabe como fazer o herói iniciar sua jornada? O herói não tem um grande motivo para iniciar sua vingança? O autor quer simplesmente dar o clássico apelo dramático para a história? Faça a mocinha que o herói ama ser sequestrada, sua vida colocada em perigo enquanto ela desesperadamente grita por socorro.
Outra variante (um pouco mais radical, inclusive) da donzela em perigo é aquela mulher, geralmente muito próxima do protagonista, que é introduzida na história com uma única função: morrer. Isso vai despertar os ímpetos vingativos do herói, que irá até o inferno para se vingar do assassino de sua amada. O autor espera, também, que uma morte assim, tão abrupta, cause empatia nos leitores, que eles sintam pena e entendam um pouco o lado do herói.
E qual é o problema desses dois clichês? Não haveria nenhum se, na maior parte de suas ocorrências, a mulher não fosse anulada como personagem e relegada à categoria de ferramenta no enredo. Essas mulheres não têm presença, não são desenvolvidas como seres dotados de personalidade e história próprias. Ora, tudo o que colocamos na história é uma ferramenta para o enredo funcionar, afinal, nós precisamos fazer nossa história chegar até o final, mas suas mulheres realmente precisam ser apenas isso? Essa representação só reforça a ideia de que a mulher é o sexo frágil, capaz de nada mais do que gritar por socorro e esperar por um homem que a socorra.


Girl on girl hate – Para sermos justos com esse clichê, ele é muito mais comum no cinema do que na literatura, o que não quer dizer que ele não apareça em muitos livros, principalmente naqueles voltados para um grupo majoritariamente feminino e adolescente.
Girl on girl hate é o ódio entre mulheres, e ele pode se manifestar de diversas formas. É geralmente baseado na ideia de que não existe amizade verdadeira entre mulheres, que o único propósito das relações femininas é a de competição e que, no fim, as mulheres sempre estarão prontas para boicotar umas às outras. É um tema muito extenso e, baseado em suas aparições, pode ser dividido em alguns clichês menores e mais específicos, como:
- Duas mulheres que brigam por um homem: rivalidades no amor são comuns; é possível vê-las na vida real o tempo todo, porque não é incomum pessoas brigarem pelo amor umas das outras. Contudo, na literatura e no cinema — sobretudo quando a história é contada sob o ponto de vista de apenas um personagem— é comum uma desumanização de uma das partes em prol da “santificação” da outra. Hã?
Isso significa que uma das mulheres é demonizada com um leque de características (que serão abordadas no próximo ponto) enquanto, para a outra, é dado aquele conjunto de características que torna possível classificá-la como Mary Sue. Em linhas gerais, uma delas estará sempre fazendo tudo para prejudicar a outra, agindo de forma agressiva e até mesmo ilógica, às vezes (mesmo considerando que o amor nos deixa ilógicos), enquanto a segunda continuará acreditando de boa fé na humanidade e não fará nada além de se defender. No fim pode rolar até uma lição de moral.
O interessante é que, apesar de eu estar falando sobre representação feminina, esse clichê é muito comum na literatura em geral. Há sempre heróis e vilões, há sempre um lado demonizado e um lado perfeito demais para se acreditar. Todo mundo adora o combate entre o vilão e o herói, mas ele pode deixar seus personagens planos e o enredo previsível; afinal de contas, todo mundo sabe que o herói vai vencer no fim e isso pode acabar com toda a graça.


- A vadia do mal e a virgem do bem: Esse é apenas um desdobramento do tema anterior, mas por sua repetição excessiva, merece alguma atenção. Essa tendência é notável em histórias de colegial, principalmente, e um chavão clássico do cinema.
É muito simples: a vadia do mal é a menina bonita que sabe que é bonita. Ela é alta, tem postura, faz as unhas, passa batom, conversa sobre assuntos de mulher — isso não é bem visto — e é, no geral, considerada bem fútil e burra. Muitas vezes namora o cara popular. A virgem do bem, por sua vez, é aquela menina que é bonita (elas sempre são bonitas), mas não sabe disso. Ela gosta de coisas “diferentes” (como videogames, filmes de ficção científica, andar de skate), não sabe nada de maquiagem, não entende nada de moda e tem zero experiência com relacionamentos.
E, incrivelmente, as duas sempre se odeiam. Geralmente por causa do homem, mas nem sempre; pode ser alguma competição escolar, alguma vaga em alguma instituição do colégio... A vadia do mal sempre age de maneira muito agressiva, mesmo que não haja motivo, e a virgem do bem sempre aceita. Por um tempo, uma humilha a outra (geralmente de forma verbal), até que finalmente a mocinha se cansa da opressão e vira a mesa. A vilã pode terminar humilhada, sozinha ou amargurada; em raríssimos casos, ela e a mocinha se tornam amigas.
Não é tão comum, mas também acontece a versão masculina desse clichê, onde o cara musculoso e popular é o vilão e o nerd retraído, o mocinho. É interessante notar que as características de vilania estão relacionadas ao ideal de beleza e extroversão, enquanto as de bondade, à introversão e ao altruísmo.
Como novamente já foi dito, isso pode deixar seus personagens planos e o enredo previsível. Mas, principalmente, isso pode criar, na vida real, a ideia de que as pessoas mais populares (ou as que você considera mais bonitas) são inimigos a serem combatidos ou que você, por ser retraído e não fazer parte destas turmas, é melhor do que eles. E todo mundo sabe (ou deveria saber) que nós somos muito mais do que as nossas aparências ou as pessoas com quem andamos.



E por aqui terminamos a primeira parte. Na parte dois, vou falar sobre as aplicações do teste de bechdel na literatura, sobre a beleza excessiva de nossos protagonistas, a sexualização das mulheres em enredos de fantasia e alguns outros tropes menores. Gostaria de lembrar, novamente, que não estou ditando regras nem dizendo o que você deve ou não escrever, mas é sempre bom estarmos conscientes daquilo que colocamos no papel e compartilhamos com outras pessoas.

Espero que tenham gostado. Até a parte dois!
*Agradecimentos a Inês Montenegro, Giulia Correia, Yasmim Bom, Iamela Freitas e Raphael Ferreroni.



2 comentários:

  1. Adorei o post.É verdade, hoje as pessoas fazem esteriótipos mesmo sem saber, tanto na vida como na literatura. É como se a mais popular(Exemplo) fosse sempre a vadia esnobe e vulgar e a quietinha fosse sempre a que aceita tudo em silêncio.Eu quero inovação, realidade e verdade em fanfics! Não cópias sem almas de outras mais famosas.Parabéns! :3

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