Por: Senhorita Ellie
A literatura é uma arte extensa e cheia de possibilidades. Com ela
nós podemos criar mundos, situações, pessoas, raças, culturas...
Essa liberdade é maravilhosa e é ela que torna o ato de escrever
tão fascinante, porque o ato de criar é fascinante. Mas não é
possível criar nada se não tivermos algo anterior — um conceito,
uma ideia — em que nos basearmos. Quem criou o guarda-chuva, por
exemplo, pensou em algo que pudesse proteger-lhe da chuva; quem
inventou o fogão, em algo que pudesse criar fogo de maneira fácil e
prática. Em ambos os casos os criadores tinham ideias anteriores nas
quais se basear — a da chuva, a do fogo — e suas invenções
foram apenas um meio de chegar até elas.
A analogia pode ser estranha, mas descreve de maneira concisa o nosso
processo de escrita: nós podemos criar mundos e pessoas, mas sempre
teremos a nossa própria realidade como base. Uma história de
fantasia medieval tem como base a nossa própria Idade Média; elfos,
vampiros e outras raças “mágicas” têm como base a nossa
própria imagem humana com alterações que sirvam ao propósito do
autor. Assim, a nossa realidade está sempre sendo representada em
nossas histórias, por mais fantasiosas que sejam, porque não
podemos nos desvincular dela; é ela a base para nossa criação.
Aonde eu quero chegar? Se temos nossa realidade como base, nós a
representamos de alguma forma nos universos que criamos.
Representamos cidades baseadas nas cidades que conhecemos, culturas
baseadas naquelas que vivemos e pessoas baseadas nas que conhecemos.
Contudo, com influências do meio ou por causa de nossos próprios
preconceitos, essa representação pode vir distorcida, e é aí que
eu quero chegar com esse artigo: o modo como representamos homens e
mulheres em nossas histórias e, consequentemente, a influência que
isso pode ter em futuras representações. Vou me focar, nesse artigo
de duas partes, na representação feminina, por ser essa aquela que
apresenta a maior quantidade de distorções e estereótipos. Por ser
um tema um pouco extenso, vou me focar nos principais vícios, dando
motivos para você não usá-los ou para pensar um pouco antes de
colocá-los em suas histórias.
Tenha consciência de que a história é sua e o jeito como você a
escreve está sob seu controle — apenas seu. Mas também tenha
consciência de que, quando você reproduz um preconceito, você está
contribuindo para que ele se perpetue. É sua escolha considerar o
lado político da nossa escrita ou apenas o lado que visa apenas o
entretenimento, mas, como em toda escolha, é bom conhecer os dois
lados. Dito isso, ao artigo.
As falhas da representação feminina na literatura
A
representação feminina nas histórias, como um todo, estrutura-se
sobre clichês, vícios de enredo que já não apresentam grande
originalidade, mas que continuam vendendo e, por isso, continuam
sendo usados. O motivo pelo qual tais clichês continuam vendendo é
razão para outro artigo, mas o que interessa aqui é o fato de que a
maior parte desses clichês envolve algum preconceito e/ou
estereótipo de gênero, e por causa de sua repetição excessiva,
nós nos tornamos muito habituados a eles. Isso pode parecer
inofensivo, afinal, são apenas livros, não é mesmo? Contudo, tudo
o que consumimos e escutamos têm influência no modo como pensamos e
vemos o mundo, de forma que acabamos reproduzindo esses preconceitos
no dia-a-dia sem nem perceber.
Um
grande exemplo de como as coisas que escutamos são determinantes no
modo como vemos o mundo é o clássico preconceito (e um grande
estereótipo de gênero) da loira burra. Não há nenhum estudo que
comprove discrepâncias intelectuais entre loiras e morenas (e,
interessantemente, homens loiros não ganham tal conotação
negativa, embora a cor de cabelo seja a mesma), mas, de tanto
ouvir piadas sobre o assunto, muita gente realmente acredita
que as mulheres loiras realmente sejam mais burras (ou que, abordando
um lado mais absurdo, pintar o cabelo de loiro seja capaz de minar a
inteligência de alguém). O contra-argumento mais comum para as
reclamações sobre esse estereótipo é oras, mas é só uma
piada!, mas ninguém pensa nas mulheres loiras que são obrigadas
a escutar piadas e serem ridicularizadas por isso.
Pronto.
Eu dei um exemplo de como uma piada pode perpetuar preconceitos e
estereótipos, mas onde a literatura se encaixa nisso? Em mais campos
do que você imagina. A seguir, vou abordar de forma mais ou menos
superficial os principais vícios da representação de personagens
(sobretudo as mulheres) nas histórias. Por que as mulheres? Além do
motivo já citado — a representação das mulheres em cima de
vícios de enredo e clichês —, porque a nossa representação é
minúscula comparada ao que ela poderia ser, principalmente em
gêneros de “predominância masculina”, como a fantasia, por
exemplo. Em gêneros onde praticamente não somos representadas,
então é natural que lutemos por uma representação mais justa de
nossas mulheres.
E
antes que qualquer pessoa pense que é mentira a parte que diz sobre
a nossa representação quase inexistente, peço que você tente se
lembrar, em detalhes, o número de mulheres presentes em O Hobbit,
por exemplo, um dos mais conhecidos livros de fantasia do século
passado — e uma fonte de inspiração para muitas histórias.
Não
há nenhuma.
Agora,
aos clichês:
Donzela em perigo – Esse é, provavelmente, o estereótipo
mais clássico. Não é necessário pensar muito para se lembrar de
exemplos dele em nossa cultura. A maior parte dos contos de fada, por
exemplo, é totalmente estruturada em cima desse clichê: a mulher é
compassiva, dócil e incapaz de se defender, sendo assim necessário
que um homem apareça para salvá-la do perigo no final. Ou a mulher
é aparentemente forte e independente, mas se torna igualmente frágil
nos momentos de perigo, sendo novamente necessário que um homem
apareça para salvá-la no fim.
Esse
chavão, apesar de aparecer em diferentes graus em diversos gêneros
da literatura, encontra seu clímax em histórias de fantasia,
sobretudo aquelas em que temos um protagonista homem (ou seja, a
grande e esmagadora maioria). Isso acontece porque esse é um clichê
que serve perfeitamente como um gás para qualquer enredo, mesmo já
sendo perfeitamente manjado. O autor não sabe como fazer o herói
iniciar sua jornada? O herói não tem um grande motivo para iniciar
sua vingança? O autor quer simplesmente dar o clássico apelo
dramático para a história? Faça a mocinha que o herói ama ser
sequestrada, sua vida colocada em perigo enquanto ela
desesperadamente grita por socorro.
Outra
variante (um pouco mais radical, inclusive) da donzela em perigo é
aquela mulher, geralmente muito próxima do protagonista, que é
introduzida na história com uma única função: morrer. Isso vai
despertar os ímpetos vingativos do herói, que irá até o inferno
para se vingar do assassino de sua amada. O autor espera, também,
que uma morte assim, tão abrupta, cause empatia nos leitores, que
eles sintam pena e entendam um pouco o lado do herói.
E
qual é o problema desses dois clichês? Não haveria nenhum se, na
maior parte de suas ocorrências, a mulher não fosse anulada como
personagem e relegada à categoria de ferramenta no enredo. Essas
mulheres não têm presença, não são desenvolvidas como seres
dotados de personalidade e história próprias. Ora, tudo o que
colocamos na história é uma ferramenta para o enredo funcionar,
afinal, nós precisamos fazer nossa história chegar até o final,
mas suas mulheres realmente precisam ser apenas isso? Essa
representação só reforça a ideia de que a mulher é o sexo
frágil, capaz de nada mais do que gritar por socorro e esperar por
um homem que a socorra.
Girl
on girl hate – Para sermos justos com esse clichê, ele é
muito mais comum no cinema do que na literatura, o que não quer
dizer que ele não apareça em muitos livros, principalmente naqueles
voltados para um grupo majoritariamente feminino e adolescente.
Girl
on girl hate é o ódio entre mulheres, e ele pode se manifestar de
diversas formas. É geralmente baseado na ideia de que não existe
amizade verdadeira entre mulheres, que o único propósito das
relações femininas é a de competição e que, no fim, as mulheres
sempre estarão prontas para boicotar umas às outras. É um tema
muito extenso e, baseado em suas aparições, pode ser dividido em
alguns clichês menores e mais específicos, como:
-
Duas mulheres que brigam por um homem: rivalidades no amor são
comuns; é possível vê-las na vida real o tempo todo, porque não é
incomum pessoas brigarem pelo amor umas das outras. Contudo, na
literatura e no cinema — sobretudo quando a história é contada
sob o ponto de vista de apenas um personagem— é comum uma
desumanização de uma das partes em prol da “santificação” da
outra. Hã?
Isso
significa que uma das mulheres é demonizada com um leque de
características (que serão abordadas no próximo ponto) enquanto,
para a outra, é dado aquele conjunto de características que torna
possível classificá-la como Mary Sue. Em linhas gerais, uma delas
estará sempre fazendo tudo para prejudicar a outra, agindo de forma
agressiva e até mesmo ilógica, às vezes (mesmo considerando que o
amor nos deixa ilógicos), enquanto a segunda continuará acreditando
de boa fé na humanidade e não fará nada além de se defender. No
fim pode rolar até uma lição de moral.
O
interessante é que, apesar de eu estar falando sobre representação
feminina, esse clichê é muito comum na literatura em geral. Há
sempre heróis e vilões, há sempre um lado demonizado e um lado
perfeito demais para se acreditar. Todo mundo adora o combate entre o
vilão e o herói, mas ele pode deixar seus personagens planos e o
enredo previsível; afinal de contas, todo mundo sabe que o herói
vai vencer no fim e isso pode acabar com toda a graça.
-
A vadia do mal e a virgem do bem: Esse é apenas um
desdobramento do tema anterior, mas por sua repetição excessiva,
merece alguma atenção. Essa tendência é notável em histórias de
colegial, principalmente, e um chavão clássico do cinema.
É
muito simples: a vadia do mal é a menina bonita que sabe que
é bonita. Ela é alta, tem postura, faz as unhas, passa batom,
conversa sobre assuntos de mulher — isso não é bem visto —
e é, no geral, considerada bem fútil e burra. Muitas vezes namora o
cara popular. A virgem do bem, por sua vez, é aquela menina que é
bonita (elas sempre são bonitas), mas não sabe disso. Ela
gosta de coisas “diferentes” (como videogames, filmes de ficção
científica, andar de skate), não sabe nada de maquiagem, não
entende nada de moda e tem zero experiência com relacionamentos.
E,
incrivelmente, as duas sempre se odeiam. Geralmente por causa do
homem, mas nem sempre; pode ser alguma competição escolar, alguma
vaga em alguma instituição do colégio... A vadia do mal sempre age
de maneira muito agressiva, mesmo que não haja motivo, e a
virgem do bem sempre aceita. Por um tempo, uma humilha a outra
(geralmente de forma verbal), até que finalmente a mocinha se cansa
da opressão e vira a mesa. A vilã pode terminar humilhada, sozinha
ou amargurada; em raríssimos casos, ela e a mocinha se tornam
amigas.
Não
é tão comum, mas também acontece a versão masculina desse clichê,
onde o cara musculoso e popular é o vilão e o nerd retraído, o
mocinho. É interessante notar que as características de vilania
estão relacionadas ao ideal de beleza e extroversão, enquanto as de
bondade, à introversão e ao altruísmo.
Como
novamente já foi dito, isso pode deixar seus personagens planos e o
enredo previsível. Mas, principalmente, isso pode criar, na vida
real, a ideia de que as pessoas mais populares (ou as que você
considera mais bonitas) são inimigos a serem combatidos ou que você,
por ser retraído e não fazer parte destas turmas, é melhor do que
eles. E todo mundo sabe (ou deveria saber) que nós somos muito mais
do que as nossas aparências ou as pessoas com quem andamos.
E por aqui
terminamos a primeira parte. Na parte dois, vou falar sobre as
aplicações do teste de bechdel na literatura, sobre a beleza
excessiva de nossos protagonistas, a sexualização das mulheres em
enredos de fantasia e alguns outros tropes menores. Gostaria de
lembrar, novamente, que não estou ditando regras nem dizendo o que
você deve ou não escrever, mas é sempre bom estarmos conscientes
daquilo que colocamos no papel e compartilhamos com outras pessoas.
Espero que tenham
gostado. Até a parte dois!
*Agradecimentos a
Inês Montenegro, Giulia Correia, Yasmim Bom, Iamela Freitas e
Raphael Ferreroni.
Adorei o post.É verdade, hoje as pessoas fazem esteriótipos mesmo sem saber, tanto na vida como na literatura. É como se a mais popular(Exemplo) fosse sempre a vadia esnobe e vulgar e a quietinha fosse sempre a que aceita tudo em silêncio.Eu quero inovação, realidade e verdade em fanfics! Não cópias sem almas de outras mais famosas.Parabéns! :3
ResponderExcluirObrigada pela contribuição! :)
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